quinta-feira, 11 de agosto de 2011

PIERROT, RIMBAUD, BLANCHOT, GODARD

Mário Alves Coutinho


        O meu livro Escrever com a câmera, a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard (Belo Horizoante, Crisálida, 2010), foi primeiro uma tese de doutorado, em literatura comparada, defendida em 2007, na Faculdade de Letras da UFMG. Durante o doutorado, tendo decidido que a base teórica da tese seria Maurice Blanchot, e cursando uma disciplina sobre este escritor, resolvi fazer uma tradução de um texto blanchotiano que tinha todas as relações possíveis com Godard em geral e Pierrot le fou em particular: L´oeuvre finale (A obra final), do livro L’entretien infini.  Neste ensaio, Blanchot escrevia sobre a obra de Rimbaud de uma maneira que antecipava exatamente a maneira e a obra Jean-Luc Godard: não é por acaso que Alain Bergala identificou Godard tão completamente com Rimbaud: ele cita um pouco Rimbaud em Pierrot le fou, mas no final das contas Rimbaud é ele (entrevista ao autor). Ao traduzir Blanchot, eu estava me apropriando, e me aproximando, de alguna maneira, do estilo godardiano de ser e fazer cinema. Com Traduzindo Maurice Blanchot, o texto que antecede a tradução, eu pensava exatamente esta relação tão direta entre Pierrot, Rimbaud, Blanchot e Godard.


Traduzindo Maurice Blanchot

Mario Alves Coutinho


[...]de uma só língua tirar duas, uma que é lida e compreendida facilmente e a outra, que permanece ignorada, muda e inacessível, e cuja ausência (a sombra deque fala Tolstoi) é tudo quanto pressentimos.
Maurice Blanchot[1]

         Traduzir Maurice Blanchot, mais especificamente “L’oeuvre finale”, ensaio sobre Arthur Rimbaud contido no livro L´entretien infini, é certamente tentar verter para o português suas idéias e percepções sobre o poeta francês: tarefa muito difícil, quando percebemos que aqui Blanchot fala de dentro,  nunca somente e tão simplesmente sobre a experiência poética rimbaudiana. Ao contrário: “A obra final” é um texto de alguém que, para falar de algo, ou sobre algo, de alguma maneira também faz a experiência deste algo, através das palavras, da forma com que escreve, dos volteios do seu estilo.
         Uma passagem da tradução que tentei realizar pode servir de exemplo para a dificuldade específica que tive de enfrentar (e que, é claro, todo tradutor de qualquer texto de qualidade encontra). Na página 424 da edição que tenho em mãos, falando de Rimbaud e de Uma temporada no inferno, ele escreve que “[...] cette heure sévère qui marquera vraiment por lui le tournant de l´histoire, la Saison étant elle-même cette parole du tournant ou tourne, d’une manière vertigineuse, le temps.”
         Num primeiro momento, consultando um dicionário francês-português (de Domingos de Azevedo), pensei que a melhor tradução para “tournant” poderia ser “virada”, e que a melhor versão para “tourne” seria “gira”. Achei que esta tradução seria fiel ao que Blanchot diz, à sua idéia, e acredito que seria correta. Mas ela não faria justiça à maneira como o autor diz o que tem a dizer: nesta passagem, ele usa a mesma palavra três vezes, sendo que, na terceira, com o verbo no presente do indicativo, portanto, ligeiramente diferente. A própria palavra “girava”, mudava, mas ainda era a mesma. Foi quando me dei conta que poderia traduzir “tournant” por reviravolta, e “tourne” por “dá volta”.  Desta maneira, também na tradução, as palavras eram quase as mesmas, mas “giravam”, “davam voltas”. Minha tentativa de fazer uma tradução o mais próximo possível de Blanchot, neste trecho específico, ficou sendo, então, “[...] este momento severo que verdadeiramente marcará para ele a reviravolta da história, a Temporada sendo ela própria esta palavra da reviravolta onde dá volta, de uma maneira vertiginosa, o tempo”.
         Outros exemplos e outros trechos deste ensaio poderiam ser citados, mas este sobre o qual me estendi dá uma idéia precisa da importância de Maurice Blanchot para a teoria literária, mas não somente: Blanchot não é um daqueles ensaístas que somente enfileiram ótimas idéias no seu texto, mas alguém que, ao fazê-lo, o faz de uma maneira sobretudo poética. No seu texto, como com qualquer grande escritor, as palavras não somente representam, ou apresentam, mas são. Blanchot, como ensaísta e teórico, é da estirpe de T. S. Eliot e Octavio Paz: ao fazer teoria da literatura, nunca deixou de fazer literatura.

II

         Uma afirmação de Blanchot em “A obra final” confirmou, para mim, algumas percepções que venho tendo a propósito das relações entre Godard, sua obra, e particularmente Pierrot le fou, por um lado, e Rimbaud, por outro. Já na parte final de seu ensaio, Blanchot escreve que “[...] a Temporada, afirmação simultânea de todas as posições contraditórias, prova efetuada da contradição mais viva [...]”. Em Pierrot le fou encontramos inúmeras citações de Uma temporada no Inferno, com o título, inclusive, sendo dito em “off” várias vezes, como um refrão, ou como o título de mais um “capítulo” das aventuras de Ferdinand e Marianne. Várias características ligariam Godard e Rimbaud, mas uma delas, que sempre vi em Godard, subitamente, através desta frase de Blanchot, tornou-se perfeitamente visível e concreta: tanto em Pierrot, como, aliás, em toda sua obra, existe uma vontade (uma determinação) de nunca ficar somente com um ponto de vista único, nem mesmo que seja o seu próprio, sobre o mundo. A todo o momento a dúvida, a contradição, o questionamento enriquecem o texto godardiano: o que vemos  é, na verdade, um texto polifônico, onde várias vozes e várias posições (muitas vezes contraditórias) dialogam incessantemente, a propósito de qualquer afirmação ou informação. Tudo se passaria como se Rimbaud e Godard pudessem ser definidos por Deleuze, quando este afirma sobre Godard: “em Godard, o ideal do saber, ideal socrático ainda presente em Rossellini, desaba: o “bom” discurso, do militante, do revolucionário, da feminista, do filósofo, do cineasta, etc., não é tratado melhor do que o mau[2]”. Ou, nas palavras de Serge Daney, citado por Deleuze, no mesmo livro: “Ao que o outro diz, asserção, proclamação, sermão, Godard responde sempre com o que um  outro outro diz. Existe sempre  um fator desconhecido em sua pedagogia: a natureza da relação que ele mantém  com seus bons discursos (que ele defende, o discurso maoísta, por exemplo) é mal definido[3]”.  O resultado final é que, como afirmou Blanchot, tanto em Uma temporada no inferno quanto em Pierrot le fou  (e, de uma maneira geral, em quase toda obra godardiana) o que temos sempre é a “afirmação simultânea de todas as posições contraditórias”. 
Referências Bibliográficas

BONNEFOY, Yves. Rimbaud par lui-même. Paris: Éditions du Seuil, 1961.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 2001.
CAMPOS, Augusto de. Rimbaud livre. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
DELEUZE, Gilles. L’image-temps, cinéma 2. Paris, Les Éditions de Minuit, 1985.
DOMINGOS DE AZEVEDO. Grande dicionário francês-português. Lisboa: Livraria Bertrand, 1952.
GODARD, Jean-Luc. Les carabiniers, Pierrot le fou et films “invisibles”(roteiros). Paris: L’Avant-Scène, 1976.
RIMBAUD, Arthur. Poésies completes. Paris: Le Livre de Poche, 1966.
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno & Iluminações.Trad. Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.




[1] Blanchot, 1997, p. 185.
[2] Deleuze, 1985, p. 224. Tradução do autor.
[3] Deleuze, 1985, p. 224. Tradução do autor.

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