domingo, 5 de fevereiro de 2012

GODARD, TRUFFAUT E A NOUVELLE VAGUE (LESDEUX DE LA VAGUE, 2009)

Uma estimulante viagem no tempo. Inclusive pelas revelações que só um documentário de pesquisa poderia fazer. Deu vontade de rever todos os filmes da NV (mesmo aqueles de que não gostei na época), desde os curtas-metragens iniciais (de alguns deles somente agora estou conhecendo trechos).

Aspecto interessante, que toma até bastante tempo na tela: o filme de Emmanuel Laurent focaliza o “problema de identidade” de Jean-Pierre Léaud, entre dois pais que começaram juntos como irmãos e depois seguiram caminhos divergentes, terminando como inimigos mortais.

Léaud fala da “liberdade” e da “verdade” trazida pelo movimento, em comparação com o cinema francês tradicional. Liberdade do ator, verdade da imagem. O cinema, diz Godard, ao contrário da pintura por exemplo, se voltava, não para a arte, mas para a vida: as ruas, as galerias, os apartamentos, “les voitures”.

Mas a impressão que se tem hoje é de que nenhum dos dois, nem Godard nem Truffaut, soube encontrar pessoalmente e transmitir pelo cinema uma compreensão mais ampla e profunda da vida e do mundo, que àquela época já era acessível aos intelectuais.

O fracasso comercial dos filmes da NV logo nos primeiros anos da década de 60 (aliás, como lembra o filme, todo o cinema mundial estava em crise), é emblemática. Como, apenas 20 mil espectadores para uma nova obra-prima de Godard? Pois é. Em vez das imagens da vida que o movimento tentava vender, o público continuava preferindo as superproduções escapistas. Em vez da guerra “real” de “Le petit soldat” e “Les carabiniers”, o público queria mesmo era ver “O mais longo dos dias”. Filmes idiotas para pessoas idiotas, segundo Jean-Luc.

Será que aquela geração que sabia tudo do cinema não percebia que o grande público, leigo e idiota, não buscava a “vida” no cinema? E ignorava portanto que estava infringindo uma lei fundamental do cinema, qual seja sua dependência do grande público?

Mas há felizmente o outro lado da questão: que filmes daquela época ficaram para a história do cinema? Que filmes são hoje cult-movies estudados, tornados dissertações de mestrado e teses de doutorado nas universidades, guardados em casa com carinho, vistos e revistos constantemente?

Os 95% dos filmes que constituíam a massa anual da produção foram na época consumidos como hamburguers ou sorvetes vespertinos ou pizzas noturnas e esquecidos para sempre.

As produções que alimentam a indústria ganham dinheiro, mas são as rupturas, as inovações que permanecem.

Curioso como filmes que pretendiam redescobrir a vida lá fora (como já havia tentado o neorrealismo) eram feitos de citações cinematográficas, de homenagens eruditas, de private-jokes de e para cinéfilos, de frases de efeito, de boutades.

O filme é interessante também porque mostra o quanto as pessoas podem mudar com o tempo. Malraux passa do herói de 59 ao vilão de 68. Truffaut adere ao cinema que ele repudiava quando crítico, quase retorna ao “cinéma de papa”, enquanto Godard passa de um esteticismo radical a um revolucionarismo político radical.

A crise, não mais comercial e sim ideológica, culminaria na explosão de Godard no palco de Cannes-68: “Os operários em greve, os estudantes nas ruas, e vocês querem falar de travellings e planos gerais? Temos que suspender este festival.”  Mas foi o que ele fez durante anos nos “Cahiers”: “O travelling é uma questão de moral.”

Dos dois cineastas, Truffaut, como se sabe, foi o mais esperto: para superar a crise, buscou tornar-se um diretor de prestígio, procurou atrair público (“A história de Adele H.”, “A sereia do Mississipi”, “O último metrô”), ganhou o Oscar de filme estrangeiro com “A noite americana” (coisa impensável em relação a Godard, que só faturou um “prêmio honorário” da Academia em 2010), apareceu como ator numa produção de Spielberg (“Contatos imediatos de terceiro grau”). Enfim, tornou-se, na opinião do antigo amigo, “um mentiroso de merda”.

Meu balanço pessoal da Nouvelle Vague ao final do filme?

A palavra que define melhor as obras-primas do movimento não foi sequer mencionada no documentário: poesia. Eram, antes de tudo, e essencialmente, e continuam sendo para mim, obras-primas de poesia cinematográfica. Quando Truffaut perdeu a inspiração poética e Godard se perdeu ideologicamente, ambos deixaram de me interessar.



José Haroldo Pereira
(Rio de Janeiro, 2011)