domingo, 21 de agosto de 2011

30 ANOS SEM GLAUBER

     Comer e coçar, é só começar. E conversar. Sobretudo sobre a memória. A formação edípica nos leva à obsessão pela reconstituição do passado. O passado em nós. Somos uma construção progressiva do que vivemos. E o passado não é preciso, não é exato. É filtrado pelas emoções, pela afetividade, pela seletividade aleatória. Alain Resnais tornou a memória matéria prima de sua construção artística. O cinema de Resnais é a busca de um Édipo marxista (não seria esta a razão de Pasolini ter filmado Sófocles, algum tempo depois de "Toute la Mémoire du Monde", "Nuit et Bruillard", "Hiroshima, Mon Amour" e, sobretudo, "L'Anné Dernière a Marienbad" - ou Baden Salsen?).

     Um dia, lá se vão quase cinquenta anos, entro no Copacabana Palace, depois de cruzar, em uma butique do bairro, com Troy Donahue, bonito, coloquial e descontraído, onde compro uma blusa de banlon. A cidade estava coalhada por estrelas. Arnaldo Jabor filmava tudo que acontecia no I FIF (Festival Internacional do Filme, do Rio), organizado por Moniz Vianna. Lá dentro encontro, na sala de imprensa, com Glauber Rocha excitadíssimo que me pega pelo braço e me diz: "Vem cá, quero te apresentar a uma figura.". A "figura" cresce em minha frente de forma assustadora. Está de costas e enquanto vira-se para nós, torna-se maior ainda. Glauber, à sua maneira, arrisca um inglês em direção ao personagem: "Mr. Lang, I want you to meet a young brazilian film maker". Mr. Lang não era ninguém menos que, Fritz Lang. Uma nuvem cobriu meus olhos e acho que perdi a fala. Estendi a mão em direção a Mr. Lang, gaguejei qualquer coisa e fiquei ali, perplexo, enquanto Glauber falava com Fritz. À minha cabeça volteavam, alucinadamente, cenas de "Metropolis", "Frau im mond", "Mabuse's", "Os Nibelungos", "M", "You Only Live Once", "Moonfleet", "O Tigre de Bengala", "Sepulcro Indiano", "Hangmen Also Die", "Cloak and Dagger" e outras imagens (um diretor de cinema rodando "Odisséia", à beira do Mediterrâneo, enfrentando um produtor americano que falava, "Quando ouço falar em cultura, saco o meu talão de cheques", sob os olhares de um casal em desagregação, vivido por Michel Piccoli e Brigitte Bardot e um tema de Légrand - ou Délerue? - numa leitura de Moravia, um comunista togliattiano). Mr. Lang me olha elegantemente através de seu monóculo, de cima de seus quase dois metros de altura e me aperta a mão. Não tinha o que dizer. À minha frente, apresentado por uma das maiores admirações que havia cultivado nos últimos anos, Glauber Rocha, estava um dos maiores arquitetos (literais) do cinema moderno (ou do cinema, ele mesmo). Minha vida tinha se tornado um furacão. Muita coisa ocorria simultaneamente para um menino de vinte e um anos. Uma nova geografia para viver, um amontoado de pesonagens míticos desfilando à minha frente, me tratando como um "young brazilian film maker", novos desafios afetivos, um vulcão de sonhos que pareciam reais (e eram reais).

     Colaborava com a pós produção de "O Padre e a Moça" e estava dando cobertura à montagem ao primeiro filme do CEMICE, dirigido por Carlos Prates Correia, "Milagre de Lourdes". Eduardo Escorel montava o filme na moviola do "Patrimônio" (SPHAN), ancorada em Santa Teresa, na casa do Benjamin Constant (em restauração). Por ali circulavam Cacá Diegues, montando "A Grande Cidade" (com Gustavo Dahl), Paulo César Saraceni (dando retoques finais em "O Desafio") e Davi Neves, a figura de ligação de tudo, pontuando com seu humor cortante, preciso e agregador. "Milagre de Lourdes" ficou pronto numa tarde e "Pesce Cane" (Carlos Prates) não estava no Rio. Tive notícias que o filme estava disponível para vermos e resolvi, com Escorel, dar uma olhada no bar Lutécia, do outro lado da rua Álvaro Ramos (sede da Lider Cine Laboratórios). Lá estavam Glauber Rocha e Paulo César Saraceni. Chamei-os para ver o filme. Dez minutos depois (é um curta metragem) Glauber e Paulo César saiam entusiasmados da sessão: "Genial! Surge um Buñuel brasileiro!" e outras observações da mesma dimensão.

     Fiquei amigo de Glauber e comecei a desvendar um segmento do Cinema Novo que ocorria na Rua da Matriz, em Botafogo. Morava com Escorel, em Botafogo e tudo parecia acontecer por ali. A turma da Rua da Matriz começou a "aparecer" para mim: Cacá Diegues (que morava na esquina da Matriz com Voluntários da Pátria), Davi Neves (que, por sua vez, morava na São Clemente, em frente à esquina da Matriz, com sua mãe, D Alaide e o pai, General Luiz Neves e seus trenzinhos de montar, além de um irmão), Paulo César (que me convidava para ser seu assistente em "Capitu", morava em um prédio "arquitetura Niemeyer", na São Clemente, ao lado do quartel da Polícia Militar), Fernando Duarte, Luiz Fernando Goulart, Affonso Beato, João Carlos Horta eram da "turma da Matriz", que freqüentava a casa da Rosa Maria Penna, a Rosinha, naquele momento mulher do Glauber e sua atriz ("Dragão da Maldade", um tempo depois), assim como de Davi ("Memória de Helena"). No FIF, a casa de Luis Carlos Barreto era o ponto de encontro de Roberto Rossellini e Jean Rouch. No porão, da Rua 19 de Fevereiro, com Mena Barreto, a produtora abrigava o equipamento e a moviola manejada por Raimundo Higino (meu primeiro "chefe", diretor de produção de "O Padre e a Moça"). Trabalhava ali quase todos os dias tentando organizar a contabilidade do filme do Joaquim. No quintal os "meninos" faziam cinema (Bruno filmava Paula e a Baleia, para o seu primeiro filme, apresentado no II Festival de Cinema Amador JB/Mesbla).

     Glauber sempre foi fascinado pelos "mineiros". Mas era uma amor pontuado pelo ódio. Em 1957, ainda menino de dezoito anos, veio a Minas conhecer a "turma da Revista de Cinema" (motivado pelo mestre "maior" de todos nós, Paulo Emílio Salles Gomes e seu mentor - de Glauber - Dr. Walter da Silveira). Propôs um projeto para o novo cinema brasileiro. Os baianos já começavam a filmar. Trigueirinho Neto estava por lá e começado uma "onda" que levaria ao novo cinema baiano de Roberto Pires, Olney São Paulo, Rex Schindler (como produtor), Luis Paulino dos Santos e, depois, Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno, Orlando Senna, Alvinho Guimarães e muitos outros, com a experiência de "Bahia de Todos os Santos". Alex Viany já aparecia para fazer o seu "Sol Sobre a Lama". E a Bahia incendiava com o Grupo Mapa, com a Jogralesca, com o trabalho de Martim Gonçalves, no teatro. E Luiz Paulino chamava os mineiros Flávio Pinto Vieira e Schubert Magalhães para o trabalho de assistentes, em "Barravento". Os acidentes de filmagem levaram Glauber a "tomar conta" do filme e os mineiros tomaram as dores de Paulino, em um dos episódios da gênese do cinema brasileiro contemporâneo, mais polêmico e que pontuou, por anos, uma radicalização de "tribos" protagonistas dessa cena cinematográfica. Os paraibanos, sob a liderança de Linduarte Noronha, já propunham um novo olhar documental sobre a realidade brasileira ("Aruanda").

     Os mineiros passaram ao largo do convite de Glauber. Cyro Siqueira, nosso maior mentor crítico, responsável direto pelos fenômenos que repercutiam Minas (o CEC e a Revista de Cinema) recusava-se a "fazer" cinema. Defendia, explicitamente, a posição de pensador do cinema. E os tempos eram de descoberta do "fazer". A crítica francesa dava as "deixas" (Bazin morreu no alvorecer da aventura de seus discípulos, em direção à realização - Bazin teria partido para a realização? Seu contemporâneo e cúmplice, Rohmer, o fez).

     Glauber sempre foi um "agitador" cultural, polimorfo (e "perverso" como o definia, numa tipologia psicanalítica, seu amigo e admirador, Eduardo Mascarenhas) e ebuliente. Seu processo criativo passava pela crítica (seus textos na revista Senhor nos indicavam suas fascinações por Luis Buñuel e nos davam o diário de filmagem em Cocorobó) e pela ação criativa. Sua compulsão criativa nos dava textos com valor literário e polêmico. O livro de textos, "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro" (editado pelo Ênio Silveira) é uma bomba lúcida, um mergulho crítico na trajetória do cinema brasileiro. De Mauro a Mário Peixoto, passando por Cavalcanti e o cangaço (de cuja inspiração, filtrada pelo texto de Ruy Facó, "Cangaceiros e Fanáticos", vão surgir os fundamentos para "Deus e o Diabo ", com a colaboração de um dos mais brilhantes poetas e pesquisadores da literatura oral, da tradição mítica do sertão nordestino, Paulo Gil Soares, mesclada ao genial cinéfilo, colaborador do "Correio da Manhã", Walter Lima Júnior - que nunca mais vai abandonar a realização, numa trajetória pessoal extraordinária), Glauber cria um dos primeiros recortes críticos do cinema brasileiro, contundente e, ao mesmo tempo, esclarecedor. O iconoclasta Glauber derruba o mito "Limite", em benefício do "operário" poeta, Humberto Mauro. Mauro se torna o farol do novo cinema desejado para o projeto de construção de um dos capítulos mais ricos da trajetória da cultura brasileira contemporânea: o "Cinema Novo" (junto com o modernismo, com o Teatro de Arena, com a Bossa Nova, com Niemeyer, Portinari, Guimarães Rosa, etc.).

     Quando tudo isso acontece há uma complexidade e emaranhado de ações que torna o momento histórico produtor de um série de fenômenos marcantes naquilo que apontamos. Glauber vem para o Rio e convida Nelson Pereira dos Santos (um ícone de pioneirismo e ousadia criativa, de pecepção de necessidades de ação no ambiente político cultural, fiel a uma trajetória que vinha sendo proposta por uma série de dados que lhe antecedem - Cavalcanti de "Simão, o Caolho", e "O Canto do Mar", Alex Viany de "Agulha no Palheiro" e "Rua Sem Sol", Carlos Alberto Souza Barros e César Mêmolo, de "Osso, Amor e Papagaio", Galileu Garcia, de "Cara de Fogo" entre outros, como Moacyr Fenelon, José Carlos Burle, Rodolfo Nani, etc.), para montar "Barravento". O CPC propunha um projeto de cultura nacional popular e o teatro de Arena estende seus braços para o morro (já descoberto, anteriormente, por Mauro e Welles, para o cinema) e para o campo, pontuando as Ligas Camponesas, do Francisco Julião (via Movimento Popular de Cultura, do Arraes, em Pernambuco), com Guarnieri (com quem Nelson Pereira se alia na primeira direção de Roberto Santos, "O Grande Momento") e Vianinha ("Gimba", "Chapetuba Futebol Clube"), dando as indicações de caminhos dramatúrgicos (com Boal e outros, criando um novo teatro colado na realidade brasileira, além dos padrões do TBC, de Zampari e seus textos nacionais, de Abílio Pereira de Almeida). Daí surge "Cinco Vezes Favela": quatro novos diretores, ativistas (Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e o "menino", Cacá Diegues se unem a um "experiente" cineasta, recém saído do IDHEC e do Museu do Homem, do Rouch e do Morin, Joaquim Pedro de Andrade (que já tinha feito o seu "Couro de Gato" e o une aos episódios dos novos companheiros) e radicalizam o projeto de um novo cinema para dar substância à transformação política que se anunciava no país. Paulo César, vindo do Centro Sperimentale di Cinematografia, de Roma, nos dava "Arraial do Cabo" (em parceria com Mário Carneiro) e, logo em seguida, numa outra perspectiva dramatúrgica, proposta por seu amigo Lúcio Cardoso, fazia o seu "Porto das Caixas". Roberto Farias, vindo da Atlântida, assistente de Watson Macedo, busca novos rumos para um discurso crítico pelo cinema, com o seu "Cidade Ameaçada" e, logo em seguida, "Assalto ao Trem Pagador" (que revela um novo produtor, Luis Carlos Barreto que, em seguida, vai produzir "Garrincha, Alegria do Povo", para Joaquim).

    Um moçambicano formado em Paris, chega e começa uma trajetória paralela (e não contrária), com um projeto "urbano", "Os Cafajestes", misturando Norma Bengell (vinda das coxias dos shows do nosso Florence Ziegfeld, Carlos Machado, revelada para o cinema por Ileli e Manga), com um ícone do teatro e do cinema (via Nelson Pereira dos Santos, com quem tinha feito "Rio Quarenta Graus", "Rio Zona Norte" e "Boca de Ouro", da peça do sogro de Jece, Nelson Rodrigues) o gênio Jece Valadão e um menino bonito, rato de praia de Copacabana, nascido do mundo das variedades, muito talentoso, Daniel Filho, dá novo tempero ao caldo rico do cinema que se fez naquele momento. O moçambicano era Ruy Guerra. Não eram homogêneos e não criaram um cinema "uno", esteticamente. As propostas eram muitas e não necessariamente coincidentes. O debate intelectual (e ideológico) era intenso. Mas o cinema se renovou, se afastando da comédia musical (que, juntamente com o rádio, eram absorvidos pela televisão, cada vez mais poderosa) e do cangaço (embora ainda utilizado, como tema revisto e relido), em busca de um novo olhar sobre o país e seu povo.

     E Glauber Rocha chega como um incendiário visionário e profeta. Propõe a estética da fome como um projeto (via Frantz Fanon) possível para um cinema do que ele sempre chamou de "terceiro mundo". Eduardo Coutinho vai para o sertão nordestino e começa a filmar a saga de um militante das Ligas Camponesas, José Pedro Teixeira, assassinado pela sua atuação agregadora, em direção ao sonho da reforma agrária. O golpe militar interrompe o projeto e o filme, clandestinamente, é escondido para surgir, vinte anos depois, numa experiência inédita no cinema, de complementação e retomada de um tempo e de uma trajetória de seres atuados pela história.

     Glauber é o agitador, o polemizador, aquele que dá a cara a tapa. Briga com Carlos Lacerda (que havia criado a Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica, num acordo da elite carioca para atender aos seus filhos - da elite - e que deu substância às fornadas posteriores do Cinema Novo) e com os novos gestores da política cinematográfica do país (INC, CAIC, etc.). E a crítica oficial.

     No dia que saí do Cine Brasil, convencido de que, depois de "Vidas Secas", seria difícil algo que nos oferecesse impacto maior na produção nacional, a perplexidade era muito grande. "Aluguei" uma cadeira no cinema e fui rever o filme umas quinze vezes. "Mais fortes são os poderes do povo" (anos depois, colocamos a frase na abertura do nosso programa sobre cinema, que fizemos na Rádio Inconfidência - FM, de Belo Horizonte, eu e Victor de Almeida, "Revista de Cinema", sob a "proteção" de Claudinei Albertini, o diretor da rádio, na época). O impacto veio. Em dez minutos de filme, Glauber nos dava a possibilidade da catarse que Fabiano não conseguiu em sua amarga e "graciliana" visão do "real" esquema de poder que permeava o país rural brasileiro ("Governo é Governo"). Glauber criava para nós um ópera épica, literária, musical (Villa Lobos e Sérgio Ricardo, como um cego Júlio/Tirésias, comentando brechtianamente o destino do ser-tão), mítica, poética, "primitiva", violenta, cinematográfica, shakespeareana, grega, etc. As referências eram nítidas (Ford, Eisenstein, Sófocles, cordel, narrativa oral, História, etc.). O Beato Sebastião (Dom Sebastião, o rei menino de Alkacer Kibir?) se contrapõe a Corisco (um trágico anjo da morte) perseguido por um Antônio da Mortes (torturado pela consciência pragmática de seu papel de "mão do destino", dos deuses - o poder do latifúndio aliado à igreja instituída, ameaçada pelos messiânicos Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Lampião, entre outros).

     A cada dia que passa "Deus e o Diabo" revela dimensões novas da lucidez de Glauber operada pela intuição altamente adestrada por uma cultura ampla, rigorosa, cosmopolita, requintada e explosiva.

     Glauber (talvez como Godard, que o admirava e mudou o rumo de sua construção artística, quando tomou conhecimento do cinema de Glauber) metaforizou-se com o seu tempo (e seu país e seu mundo). Tornou-se, incomodamente (para si) grande. Quando estive com Glauber, em Roma, depois de uma temporada com muitos encontros e colóquios, despediu-se de mim, em direção à realização do projeto "História do Brasil", na casa de seu produtor ("Der Leone Have Sept Cabezas" - ainda não cortadas), Gianni Barcelloni, na Via Del Corso: "Nos vemos no Araguaia" (isto, em 1971). E mergulhou, por um ano, na aventura de colher o material para o seu filme que construiu com o apoio dos cubanos (junto com amigo Marcos Medeiros - companheiro de Vladimir Palmeira, Wellington Moreira Franco, Jean Marc Van Der Veid, que botaram 100 mil pessoas nas ruas do Rio, em 1966, se juntando a todo o movimento estudantil do qual faziam parte José Serra, José Dirceu, Vinicius Caldeira Brant, entre outros), viajando clandestinamente pela América Latina nova, do Pacto Andino, que começava a "fazer água" pela operação Condor (Juan José Torres, Velasco Alvarado caindo, um por um, culminando com a derrubada de Allende, em 1973).

     Glauber, logo que os homens de Sierra Maestra, tomaram o poder, no alvorecer de 1959, começou a corresponder com Alfredo Guevara (o Ernesto, o argentino, não era nem parente) de quem se tornou amigo e parceiro. Alfredo estava, naquele momento, criando o ICAIC (Instituto del Arte y Industria Cinematográfica), junto com Santiago Álvarez e Alea. Anos depois, em 1971, no Festival de Cinema de Pesaro, uma cidade administrada pelo PCI, parte do "cinturão vermelho" da Itália, à beira do Adriático, Glauber me apresenta a Alfredo Guevara, com quem polemizava na ocasião, pois Tomaz Gutierrez Alea (o Titon), apresentava um filme que não era muito bem visto pela burocravia do cinema cubano (embora produzido por ela), "Una Pelea Cubana Contra los Demonios".

     O Festival, dirigido pelo grande amigo do cinema brasileiro, Lino Micceché, era um ponto de referência do cinema de resistência. Homenageava, naquele ano, Nagisa Oshima, com uma retrospectiva completa (em 1971). Gianni Amico e Gustavo Dahl tinham conspirado para irmos (eu e Andrea Tonacci) ao Festival. Gianni dizia: "Depois que Godard desconstruiu o cinema, Oshima é o novo vento renovador" (Godard tinha feito "Vento do Leste", com o dinheiro da RAI - que produzia os cinemas de resistência, sobretudo o latino americano - e da Italnoleggio, com Gianni Barcelloni produzindo o "western spaghetti", de Godard. Uma turma, vinda de maio de 68, juntos com José Antônio Ventura, técnico de som e fotógrafo - fotografou filmes da Belair - irmão de Zuenir, se juntam a Glauber, que canta "Divino Maravilhoso" e recita o manifesto do cinema "Bola Bola", de Miguel Borges, enquanto forma uma linha de passe com Daniel Cohn Bendit, Godard, Gorin - grandes pernas de pau. Gian Maria Volonté, contrariado, passa ao fundo de cena, vestido com uma capa "Ideal", de Antônio das Mortes, enquanto Anne Wiazemsky, mulher de Jean Luc então, recita textos de Marcuse, Althusser, Poulantzas, Marx e outros ícones das leituras marxistas do Grupo Dziga Vertov).

    Glauber circulava com muita desenvoltura pelos circuitos cinematográficos e políticos presentes em Pesaro. Me apresentou a Fernando "Pino" Solanas (que estava presente com o seu "La Hora de Los Hornos", muito festejado - anos depois, fomos nos encontrando, muito cordialmente, em Minas, em Brasília, no Rio), a Pascal Bonitzer (que, juntamente com Noël Burch, Bernard Eisenschitz e outros, faziam o "Cahiers" althusseriano/construtivista/maoista, sob a batuta de Jean Louis Comolli). Ficamos muito amigos, nesta ocasião. Saíamos para conversar, queimando charutos de "kief" (que ele tinha trazido do Marrocos, da viagem que fez com a sua mulher de então, a nossa amiga, que também já partiu, Letícia) pela cidade, invadida por esculturas enormes do Arnaldo Pomodoro. Tomaz Alea teve uma enérgica defesa do seu filme por Glauber diante de uma platéia de intelectuais marxistas do tempo do PCI, de Berlinguer (Pio Baldelli, entre outros). Todos o ouviam com reverência. Era um tempo de radicalização política. A Lotta Coninua começava a ação de guerrilha urbana (sob a orientação do manual de guerrilha urbana do Marighela, editado pela Penguin Books, de Londres).

     Voltamos de Pesaro juntos, no carro de Tonacci. Uma viagem amena em uma tarde de outono que teve uma parada em Spoletto, para um capuccino.

     No início do ano, Glauber estava na sessão (a primeira, pública) promovida por Cosme Alves Neto, de "Perdidos e Malditos", na Cinemateca do MAM e comentou o filme acentuando pontos que mais gostava (a cena da encruzilhada, o papo vazio à beira da rua, a cena do boudoir, etc.) e o recomendou para Peter B. Schumann (um pesquisador alemão do cinema brasileiro - e latino americano - de quem me tornei um grande amigo e que é muito generoso com o meu filme, em seus trabalhos). Depois brigou com Schumann. Davi Neves à saída da sessão (que fazia parte de uma reunião de filmes recém saídos do "forno" - ou "horno"... - juntamente com Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Carlos Alberto Ebert, João Batista de Andrade, Emílio Fontana, Alvinho Guimarães, entre outros) dizia para mim, com suas frases lapidares que: "...você é o Eric Rohmer da curtição!"

     Um ano depois, volto à Italia, com uma filha recém nascida, em Paris, com planos de ir para Nova Iorque e Glauber chega de Cuba, com as latas de "Historia do Brasil" debaixo do braço. Marcos Medeiros já havia chegado antes (estava casado com Maria Lúcia Dahl,  com quem teve uma linda filha) e andava muito conosco. Na segunda vez que estive em Pesaro, nem Glauber, nem Gustavo Dahl, nem Tonacci, estavam lá. A turma era outra: Helena Salem, que fazia uma pós graduação, em Peruggia, Pedro Cavalcanti (um cineasta que estava exilado, pela militância clandestina, no Brasil) com sua mulher maravilhosa, Ana (mostrei "Perdidos e Malditos", para o casal, em uma clandestina e noturna sessão dentro dos muros do Vaticano) e um novo amigo italiano, o cineasta Paolo Zamattio (em Roma conheci sua mulher Paola, que tinha tido um filho, Sandro - já eram pais de Lucca - na mesma época que minha filha tinha nascido, em Paris e, com a chegada de Betty, mãe dos meus filhos, ficaram amigas e "mães cúmplices"). Paolo Zamattio montava um filme de Fernando Birri e todas as noites saíamos para tomar um vinho e comer uma pizza, no Baffeto. Paolo era filho de uma família de produtores ligados à atividade, em Roma. Um aristocrata romano que viajava em seu "Pulmino" (uma van Mercedes, fechada, que ele havia decorado como uma casa móvel, muito confortável). Com o Pulmino havia viajado pela Índia e pelo Marrocos, com Paola (mas não conhecia Paris - tanto falei de Paris, que ele foi até lá, no período que estávamos em Roma). Um dia, inesperadamente, Glauber me liga, na Pensione Odeon, Via del Tempio, e me convida para tomar um bichier di vino, na Piazza Navona. Me convida para montar "História do Brasil". Com a passagem marcada para Nova Iorque, no outro dia, peço a ele para esperar para dar uma resposta. Me convence que poderíamos montar uma casa, com uma moviola e que viveríamos todos juntos, para montar o filme. Em princípio topei mas o projeto nunca foi adiante. Mais tarde Marcos Medeiros tomou as rédeas do filme e o terminou.

     Corta: em 1966 oito intelectuais são presos na porta do Hotel Glória, no Rio, protestando contra a ditadura militar no Brasil, numa conferência da OEA. Glauber está no grupo formado por Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves, Flávio Rangel, Antônio Callado, Jaime Rodrigues e (o "nono", dos "oito do Glória"), Tiago de Mello. Maurício  Gomes Leite me convoca e criamos a Tekla Filmes, para fazer um filme sobre Otto Maria Carpeaux, produzido por seus amigos, a maioria do "Correio da Manhã". Vamos ao Parque Lage filmar Glauber Rocha, no set de "Terra em Transe". Aos berros, diante de uma multidão de atores e figurantes, Jardel Filho recita: "Deixar o vagão correr solto..." Diante de Vieira/Lewgoy, perplexo. Dib Lutfi à câmera (uma Cameflex, do Barreto, que dirigia a fotografia, num de seus raros e fantásticos trabalhos, no cinema). Depois começa a editar, na mesma moviola do Patrimônio, já instalada no centro do Rio, na Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI - de doce memória (Sylvia Ferreira, Edson Santos, Sandra Fânzeres, Marília, Sônia Nercessian, Dulce, Walter Carvalho passaram por ali), com Eduardo Escorel. Era um ponto de passagem para quem ia à Cinelândia, já sendo ocupada por uma nova geração de personagens do cinema (a Difilm, a CN, a Photolab, a Paranaguá, a Saga, a Tekla, a Tabajara, a J. P. de Carvalho, o Fontoura, o Cezário Felfelli - o rei do carvão do cinema - o Bataglin, o Alvadia e outros "aparelhos"). Moisés Kendler, o mineiro cequiano que começava a criar a sua presença no cinema (já tinha filmado, "Papo Amarelo", episódio de "Os Marginais", que compunha um dítico com "Guilherme", de Carlos Prates Correia) é chamado por Glauber para sua assistência do filme (junto com Antônio Calmon). Glauber e os mineiros.                                

     Anos depois, já no Rio, passando pela Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, ouço alguém gritando meu nome, poderosamente. Pensei comigo: conheço esse vozeirão. Era Glauber. Ficamos pelo menos uma hora, de pé, conversando. Me convidou para produzir "Idade da Terra". Na ocasião eu estava envolvido com o projeto de montagem do filme do Alberto Cavalcanti e topei, no ato. Mas não só Glauber sempre foi uma imprevisível força da natureza como, do meu lado, a colaboração com Cavalcanti tornou-se cada dia mais exigente. Não fiz o filme com ele. Para a minha tristeza, nunca cheguei a trabalhar com Glauber. Cheguei perto.

     Mas sempre senti um clima de cumplicidade com ele. Sempre me tratou, à sua maneira, muito deferentemente.

     Em agosto de 1981, Maurício Gomes Leite, que estava muito ligado a Glauber, em Portugal (que convivia com Robert Kramer e outros cineastas que passavam por Lisboa, inclusive Wim Wenders, Samuel Fuller, entre outros), nos liga e diz que Glauber estava morrendo. Ricardo Gomes Leite nos dá a notícia e ficamos completamente perplexos. Dois dias depois Glauber chega morto, ao Rio. Ricardo, que então estava trabalhando com Murilo Valle Mendes, da Mendes Júnior, manda um avião da empresa nos levar para o Rio para o velório (e vai junto). Vamos, numa delegação de mineiros, para o Rio (Geraldo Magalhães, Paulo Vilara, Paulo Augusto Gomes e Ricardo Gomes Leite). E vamos direto para o Parque Lage, onde estava ocorrendo o velório.

     Glauber numa trajetória daquele momento, passava por um processo muito solitário em Sintra, com seus filhos com Paula Gaitán, sua mulher. Relações complicadas haviam afastado os amigos e companheiros de estrada. Sua personalidade complexa havia deixado muitas cicatrizes no seu período de construção de "Idade da Terra". A colaboração no jornal do Tarso de Castro, "Enfim", sua participação no "Abertura", do Fernando Barbosa Lima, na TV Tupi, sua reação à recepção à "Idade da Terra", em Veneza, a proibição de "Di/Glauber" pela família do pintor, entre outros episódios (sobretudo a morte trágica de Anecy, sua linda e genial irmã), tinham estigmatizado Glauber. Suas posições proféticas e lúcidas em relação aos movimentos da história contemporânea brasileira, detectando sutilezas nos movimentos internos da casta militar que tomou conta do país a partir de 1964 (cujos representantes eram, erroneamente talvez, caracterizados como um "bando de torturadores sanguinários", indistintamente, todos iguais - o que não era fato, a história confirmou isso) o indispuseram com a esquerda, com a qual sempre teve relações complicadas (a reação a "Terra em Transe", vinda de uma determinada esquerda, foi bastante negativa, gerando nele uma resposta agressiva). Messiânico, profético, completamente apaixonado pelo seu país e pela América Latina (e pelos povos emergentes da África) tinha uma visão maior e, ao mesmo tempo, íntima, dos movimentos do processo político, que poucos viveram e pensaram. Da mesma forma que conduzia seu processo criativo, sua intuição altamente embasada em um ritual informacional sofisticado e complexo, o colocaram sempre em choque com um maniqueismo que operava (e opera até hoje) na chave de um modelo óbvio e que o incomodava profundamente.

     Sobrou até para mim: no auge da crise do projeto de Cavalcanti ("O Doutor Judeu") que eu tentava criar condições para a realização, com dinheiro da Embrafilme e de construção de parcerias que fomos somando (produtores portugueses como Manuel Queiróz, Arthur Ramos, Rogério Paulo e, no Brasil, Zelito Viana, José Sette de Barros Filho, Cooperativa Brasileira de Cinema, a RFF, dos Farias e outros), a iminência do fracasso do projeto fez com que se voltasse contra mim (sem me citar nominalmente) num recado malcriado, em sua página, no "Enfim". Glauber não era um pessoa de convivência fácil. Hostilizava os mineiros eventualmente (várias vezes me sacaneou falando mal de meus amigos e admirações, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos - Glauber era amigo de Mário Faustino - Otto Lara Rezende e, depois, elogiando-os, noutro momento; numa reação enérgica a uma crítica de Cyro Siqueira a "Porto das Caixas", rasgou a Revista de Cinema, no bar da Líder, gritando um discurso hostil aos críticos mineiros; e, depois, como pretexto de defesa de Cacá Diegues, que tinha perdido um festival ou uma indicação da Coruja de Ouro, para Carlos Prates Correia - "Cabaré Mineiro"? - ataca Carlos, em diversos artigos na imprensa, "sobrando" para o "cinema mineiro", a seu ver, "psicologista e reacionário") e, em outros momentos, declarando seu amor e respeito á crítica mineira (seu livro final, "Revolução do Cinema Novo", tem várias referências às suas conhecidas homenagens aos textos mineiros, da RC).

     Era amigo de Maurício Gomes Leite (com quem chegou a Godard, em 1968, em Paris) que esteve próximo em seus últimos dias, em Lisboa/Sintra. Propôs um boicote ao Festival de Cinema de Belo Horizonte (em 1968) porque a comissão de seleção havia recusado "Capitu", de Paulo César e me deu um esporro, na Mapa Filmes, na ocasião. Tive momentos e encontros muito cúmplices com Glauber. Não consigo julgá-lo pelas suas posições, sempre tão extremadas, em relação a todos. Chegou a acusar o Cinema Novo (termo criado por Ely Azeredo - seu desafeto - e adotado por Paulo César Saraceni - um amigo constante - e ele, de forma sistemática) de traição. Sua personalidade vulcânica, sensível, emocional, mas, por outro lado, lúcida ao extremo, o levava a cometer "injustiças". Não se arrependia de nada. Criou um processo de leitura e de expressão que o tornaram "id" puro. Uma escrita pessoal, idioletizada, deu o tom do seu radicalismo criativo dos últimos tempos. Uma escrita automática, movida pela sensibilidade pura, criou um dos processos criativos mais originais que o século XX assistiu. "Riverão Sussuarana" e "Jango", são textos e reflexões sobre a prosa roseana e a gênese da modernidade política brasileira, origem do que vivemos hoje (e matriz de "Terra em Transe").

     Glauber faz falta? Tanta quanto fazem John Coltrane, Jimi Hendrix, Jobim, Rogério Sganzerla, Oswald de Andrade e outros arautos do caos sublime e civilizatório.

     Mas tudo o que dizemos ainda é incompleto para tentar abordar essa força da natureza que foi Glauber. E até hoje, reflexos do seu gênio criativo aparecem. Ele está por aqui, por perto. Generosamente. Esvaiu-se em energia criativa. Metaforizou o seu tempo. Confundiu-se com ele. A poesia vive disso. E é implacável.

Geraldo Veloso

Agosto de 2011

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A OBRA FINAL

Maurice Blanchot 
Tradução: Mário Alves Coutinho

         Ao redigir Uma temporada no inferno e o “Adeus” que a termina, se Rimbaud coloca um fim à suas relações com a literatura, isto não quer dizer que no mês de agosto de 1873, no dia tal, tal hora, ele se levantou e se retirou. Uma decisão de ordem moral pode, a rigor, não ter necessidade senão de um instante para se cumprir: tal é sua força abstrata. Mas o fim da literatura é novamente toda a literatura, pois ela deve encontrar nela mesma sua necessidade e sua medida. Admitamos, como é possível e, penso eu, provável, que Rimbaud tenha continuado a fazer obra poética, depois de ter enterrado sua imaginação e suas lembranças: o que significaria esta atividade continuada e esta sobrevida? Primeiramente, que sua ruptura não foi somente “um dever”, como ele pôde pensar momentaneamente, mas respondeu a uma exigência mais obscura, mais profunda e, em todo caso, menos determinada. Em seguida, que para aquele que quer enterrar sua memória e seus dons, é ainda a literatura que se oferece como terra e como esquecimento.
Penso que Bouillane de Lacoste, devido às suas polêmicas, seus estudos e sua concisão, nos prestou grande serviço, precisamente nos afastando da possibilidade de dar a este fim a simplicidade que agradava nossa imaginação, mas não teria concordado senão com uma decisão moral. Fomos tentados a esquecer de que é necessário tempo para desaparecer e que o poeta que renuncia a si mesmo é ainda à exigência poética que ele é fiel, mesmo como um traidor. Exigência que passa pela literatura e deve reconduzir a ela. De todas as maneiras, e Rimbaud teria escrito não somente as Iluminuras, mas os milhares de versos que encontramos de tempos em tempos em Harrar, Uma temporada continua sendo a obra final, mesmo se não foi escrita por último, mesmo se ela teve necessidade do amadurecimento das outras prosas para desembocar, de uma maneira mais verdadeira e mais experimentada, sobre o silêncio.
Não temos prova definitiva de que em Londres, um ano depois da ruptura ou mais tarde, Rimbaud tenha praticado uma ação de poeta. Em compensação, e por duas vezes, ele agiu como homem de letras: uma primeira vez, copiando – passando a limpo – seus poemas em companhia de Germain Nouveau (se aceitarmos sobre este ponto as constatações materiais de Bouillane de Lacoste); depois, em 1875, em Stuttgart, remetendo através de Verlaine a Nouveau “poemas em prosa”, “para serem impressos”. Nós sabemos, pois, que até 1875 ele guarda uma certa preocupação literária. Mesmo não escrevendo, ele ainda se interessa pelo que escreveu, ele torna a passar pelos caminhos que traçou. Eles os mantém abertos como uma possibilidade de comunicação com seus amigos. Antes, devido à Temporada que ele tomou o cuidado de fazer editar, nós tínhamos o pressentimento que ele não dirigia contra sua obra uma vontade simples de agressão e de destruição: o que ele deixou transformar-se em palavras, deve também se transformar em palavras impressas; depois do que, ele não se preocupa mais, aparentemente, com esta parte dele mesmo que cessou de lhe pertencer.
A análise das Iluminuras e da Temporada são difíceis, é evidente: não por razões anedóticas ou tolamente míticas, mas porque estas duas obras (chamemo-nas assim, pois são volumes comuns nas nossas bibliotecas) não são redigidas pela mesma mão, nem no mesmo nível de experiência. Por um lado, a Temporada diz tudo; é neste sentido que ela é escrita bem no fim, quase como uma exceção; e nesta última visão, o poeta das Iluminuras, como a empreitada que tentou escrevendo-as, encontram lugar e se afirmam necessariamente no passado. A maior parte dos traços ao quais ele se serve para definir e denunciar sua tentativa (lembro-os vagamente: os poderes sobrenaturais, a ambição de alcançar o todo e em primeiro lugar o todo do homem, o poder de viver uma pluralidade de vidas, o desvelamento dos mistérios, a aproximação e a descrição de todas as paisagens possíveis, o estudo, o poder do ritmo, o uso das alucinações e do veneno), toda esta história de seu espírito, toda esta experiência tal como descreveu como vã, faz precisamente alusão aos propósitos realizados nos fragmentos em prosa e faz alusão a isso como a qualquer coisa que já aconteceu e que ele percebe como terminado.
Daí, me parece, a segurança com a qual os comentadores afirmaram a anterioridade das Iluminuras, não necessariamente por amor do mito, mas porque parece difícil de situar depois da Temporada a composição de uma obra a qual esta última faz o exame e que ela devolve ao passado.
Penso que é necessário ter em conta esta verdade. Ainda que redigidos em seguida, os poemas em prosa pertencem a um tempo “anterior”, este tempo particular da arte, com o qual quer precisamente acabar o que escreve: “Sem palavras”, ser profético, que procura por todos os meios um futuro e procurando-o a partir do fim já acontecido. Em outras palavras, o “Adeus” dá por concluídas (e terminadas) as possibilidades que são aquelas da arte em geral, aquelas que realizarão ou que realizaram as Iluminuras. A questão que se coloca é a seguinte: neste instante em que a poesia termina e a literatura se acaba – ambas não sendo uma atividade simplesmente estética, mas representando a decisão de estender ao limite extremo o poder do homem liberando-o antes de tudo da divisão da moral e lhe restituindo uma relação de domínio das forças primeiras – neste instante onde lhe é preciso renunciar à poesia como futuro, futuro que é o “desempenho”, o desdobramento de todas as possibilidades humanas pela poesia, que lhe resta, qual será a saída? A Temporada é a procura de uma resposta, a qual, sabemos, é de uma surpreendente, de uma enigmática firmeza.
Agora, este último livro não diz que seu autor não escreverá mais; ele diz o contrário desde o seu preâmbulo (redigido provavelmente por último), com uma frase que qualifica por antecipação as futuras realizações literárias às quais prevê que ele se abandonará (talvez, também, porque elas já estão acontecendo): e esperando certas pequenas covardias em atraso, vós que amais no escritor a ausência de faculdades descritivas ou instrutivas, eu destaco para vós estas hediondas folhas da minha caderneta  de amaldiçoado. Penso que estas palavras difamadoras caracterizam em qual estado de espírito um homem que se situa no fim do tempo poético (fim também das ilusões da magia poética) considera o próximo e último trabalho: ele vê nele uma falta de rigor, ele o julga anacrônico; mas reciprocamente, se “algumas pequenas covardias” que lhe restam por cumprir para terminar com a poesia estão “em atraso”, é que a afirmação do fim é uma antecipação e anuncia prematuramente o novo momento, este momento severo que verdadeiramente marcará para ele a reviravolta da história, a Temporada sendo ela própria esta palavra da reviravolta onde dá volta, de uma maneira vertiginosa, o tempo.

*
As relações das Iluminuras e do “Adeus” estarão, desta maneira, definitivamente resolvidas? Não. Porque, se é verdade que os poemas em prosa estão compreendidos por antecipação no acerto de contas final, mesmo a título de obra ainda atrasada, não é menos verdade que, mesmo respondendo à idéia de uma arte condenada (condenada como “mentira” e como “tolice”), eles pertencem a uma região outra de onde vem a nós uma potência nova, uma afirmação soberana, mesmo e talvez sobretudo quando ela exprime a necessidade do fracasso. Estamos diante de um movimento misterioso do qual não nos aproximaremos colocando-o em relação com incidentes biográficos (que, aliás, ignoramos). Bouillane de Lacoste diz que Rimbaud encontrou em 1874 ao lado de Germain Nouveau o equilíbrio e a saúde; uma saúde que passa sempre pela droga, se, como entende Yves Bonnefoy, “o tempo dos assassinos” pertence à esta nova estadia em Londres, mas constitui desta vez uma experiência bem sucedida, enquanto que, nos anos precedentes, ela não era outra coisa senão estupor, loucura, inferno[1]. Mas porque uma tal mudança? Qualquer nome que usarmos, isto constitui o inexplicável. Estudando os poemas “Jeunesse” [Juventude], “Vies” [Vidas], “Guerre” [Guerra], “Génie” [Gênio], “Solde” [Saldo], em relação com “Matinée d’ivresse” [Manhã de embriaguez] (apoteose da droga), Yves Bonnefoy se pergunta se a mudança não viria da relação recentemente descoberta entre o “veneno” e a “música”, esta sendo uma das chaves das Iluminuras, na medida em que se afirma “uma realização como que sinfônica da natureza do homem, um desencadeamento, mas rítmico, coerente, dançante, das virtualidades de sua essência”. Nestas passagens, diz ainda, “tudo se organiza em torno de duas noções essenciais: o de uma empreitada nova, de uma invenção, e a de uma harmonia”, a que o cálculo deve procurar tornar-se mestre. Análise que caracteriza talvez justamente a tentativa, mas em que esta seria novidade? Em “Vagabonds” [Vagabundos], esta prosa que, qualquer que seja a data de sua composição, evoca o tempo vivido em comum com Verlaine, encontramos alusões claras a estas mesmas pesquisas: de um lado, à empreitada (o “compassivo irmão” lhe censura de não agarrar assaz “fervorosamente esta empreitada”); por outro lado à musica, à criação através da música dos fantasmas do futuro luxo noturno, tais quais os tornam precisamente visíveis, à luz de um instante, diversos poemas das Iluminuras (“eu criava, do outro lado do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do futuro luxo noturno”). Rimbaud qualifica ironicamente este exercício de “distração vagamente higiênica”, de onde Yves Bonnefoy conclui que o momento do triunfo que “Matinée d’ivresse” celebra ainda não aconteceu, mas podemos também dizer que o triunfo é passado, neste momento tardio de lucidez e sobriedade que o julga, e é em direção a esta conclusão que se orientam outros comentadores, particularmente um dos últimos, para quem o tipo de otimismo “progressista” que atestam poemas como “Génie”, “A une Raison” [A uma Razão], “Mouvement” [Movimento], nos remetem a um período bem anterior, quando o iluminismo social permite perceber um instante, para a humanidade em marcha, num futuro de razão e amor. “Otimismo que não será mais de temporada, no momento de sua crise espiritual e moral de 1873[2].”
Evitarei, entretanto, de retomar uma tal conclusão. Parece-me que ao escutar estes poemas, ninguém pode duvidar: o que diz “Génie”, o que diz “Guerre”, “A une Raison” , “Départ”, e mesmo “Solde” tem uma plenitude de afirmação, uma confiança decisiva, uma medida também e uma autoridade que não levanta nenhuma analogia e não convém a nenhum período conhecido da vida de Rimbaud. Certeza que devemos exprimir dizendo simplesmente: as Iluminuras pertencem a um tempo outro, que este tempo seja anterior, posterior à Temporada, ou que seja contemporâneo; ou ainda e mais claramente: estas duas obras reúnem a cada vez toda sua experiência, do começo ao fim, em torno de um centro diferente, e esta retomada, porque ela se cumpre segundo uma forma e a um nível incomparáveis, faz de cada uma delas um espaço exclusivo, uma afirmação que impele o outro para o passado. Quando lemos as páginas escritas de abril a agosto de 1873, lemos, isto não é duvidoso, o que ele escreveu por último, e é necessário acreditar nisso, pois ele toma a precaução de nos dizer, as Iluminuras não aparecem mais como um excedente, num tempo já recusado, redigidas, aqui e ali, nos interstícios dos dias, por demais literárias (no sentido de um certo cuidado precioso com as palavras) para poder tomar lugar numa vida daí em diante sem literatura, de outra maneira que por “covardia”. Mas se nós chegamos a esta outra palavra e se podemos estabelecer-nos à altura que ela nos convida, então tocamos num dia tão dominador, tão extenso e tão impessoal que é o conjunto de uma existência inteira ainda desconhecida que ele parece esclarecer, como se o todo da vida e da experiência estivesse novamente escrito de um extremo ao outro, recobrindo, apagando, anulando qualquer outra versão possível.
*
Um livro sobrecarrega um outro livro, uma vida uma outra vida, palimpsesto onde o que está debaixo, por cima, muda segundo as medidas e constitui sucessivamente o original, enquanto único. Esta obrigação de ler Rimbaud, tanto da perspectiva final da Temporada, quanto na perspectiva última das Iluminuras, pertence necessariamente à verdade que lhe é própria, nos rendendo sensíveis o resultado ambíguo da poesia: se a poesia deve cada vez conter seu fracasso; mas, por uma vez, o fracasso é o fim abrupto do “Adeus” (a contestação decisiva que ela própria se exclui da verdade que significa), e, de outro lado, o fracasso é a despedida solene e calma do “Génie” que é necessário “saber” retornar, pois não existe gênio senão no movimento, na clareza, desvio da desaparição. Como escolheríamos nós, de fora e através de descobertas eruditas (úteis, bem entendido), um dos desenlaces contra o outro? Como, de dentro, nos aproximarmos mesmo do que significa a necessidade da contradição?
Certamente, pela análise, nós podemos ainda dar alguns passos e assim melhor nos orientarmos em direção ao centro destas duas obras. O centro: o aguilhão, a ponta de secreta dor que, na pressa e sem descanso, inquieta a figura, longe de a deixar se circunscrever segundo uma narração desde então determinada. Qual será o centro? Se não pertence ao comentador decidir isto por autoridade ou por saber, nós podemos tentar esta aproximação, sob forma de interrogação, perguntando: qual é, em dado caso, a relação do centro ao eu presente de Rimbaud? E se nós pressentimos que não é o mesmo eu, porque aquele que diz Eu o diz ora (e é na Temporada) com uma urgência pessoal que mantém, mesmo através de metamorfoses esboçadas no “Mauvais Sang”, uma relação violenta de presença; ora impessoalmente, a partir de um longe ou de um esquecido irrevogável, mesmo quando em “Jeunesse” ou em “Vagabonds” ele se relaciona ainda decididamente a si mesmo. Donde vem, nas duas obras aonde tudo chega ao fim, a afirmação do porvir que obstinadamente nelas se reserva? É o mesmo porvir? E nós pressentimos que, se a palavra fala cada vez por antecipação, palavra de um presente onde se diz um futuro, o que acontece não é o mesmo que o acontecido: dado ora numa espera do fim desperto, que é de fato “a vigília”, esta vigilância da promessa na qual Rimbaud, o silêncio ganho, destina-se vitoriosamente à “verdade” tangível; ora na realização de todo o possível do homem, possibilidade imensa onde não importa mais que Rimbaud esteja presente; - como se, em outros termos, o futuro da Temporada se desse por pessoalmente acessível àquele que renuncia à impessoalidade e à vastidão mágica da palavra poética, mas como se as Iluminuras designassem este futuro infinito onde nenhum indivíduo particular soubesse encontrar seu lugar e que não se deixa dizer senão por aquele que já renunciou nesta palavra. Nos dois casos, existe renúncia, mas a renúncia à palavra poética parece, em Uma Temporada, prometer um futuro pessoal de verdade, enquanto que a renúncia das Iluminuras é renúncia a toda saúde particular em favor da palavra já impessoal na qual se reserva a possibilidade de tudo aquilo que vem.
Enfim, esta última questão que retoma as duas outras: é manifesto que, numa e noutra obra, a rapidez é o traço essencial da palavra, seu poder de alcance e a chance de dizer o essencial[3]; então, por que o movimento das duas escrituras é tal que não saberíamos submetê-los à mesma medida? Pois, na Temporada, a precipitação é necessidade vital. A necessidade onde se encontra o escritor de responder ao mesmo tempo a somatórios opostos, este arrebatamento que somente lhe permite resistir às exigências adversas  de toda sua vida, faz deste texto o mais crítico que possa nos dar uma literatura. Mas, nas Iluminuras, se a prontidão do pensamento que se desloca é menos visível, não é que o movimento seja menos rápido, nem menos vasta a extensão conquistada por este movimento: ao contrário, o espaço ocupado compreende todo o espaço do homem em seu porvir, somente concentrado nos limites mais estritos; a mão do poeta se fecha sobre o que ela agarrou: cada fragmento, depois cada palavra restringe num lugar único o percurso de todos os tempos e segundo todas as maneiras e por toda parte; todo o possível humano, que não é somente o possível do saber ativo e do pensamento reflexivo, mas, como diz de uma maneira tão feliz Yves Bonnefoy, também um possível de glória, se retira, pela contração da forma (a “fórmula”), na unidade de um “lugar” central, lugar de concentração que é menos o centro que seu imóvel brilho.
As Iluminuras, por mais dispersas que as circunstâncias no-las tenham restituído, por mais estranhas que elas permaneçam às estruturas de uma composição bem encadeada, por mais instáveis que elas sejam, têm por movimento a atração mais direta e a mais decidida em direção a um centro possível, explosão que, explodindo, retine no seu lugar de origem, enquanto que a Temporada, afirmação simultânea de todas as posições contraditórias, prova efetuada da contradição mais viva, é a experiência de um pensamento caçado e expulso de seu centro, que ela descobre ser o impossível” e que ela se aproxima o mais perto, precisamente neste desregramento que a impele, dispersada, para o exterior. Mas o que carregam estas palavras: “possível”, “impossível”? É menos o segredo de Rimbaud que o nosso, quero dizer nossa tarefa e nosso desígnio. Certamente, é fácil dizer que estes nomes são as duas maneiras de nomear o “desconhecido”, os dois modos de aceder ou de se ligar ao que é outro. E é fácil ainda sugerir que “voltar-se para...” e “desviar-se de...”, estes dois movimentos que não podem ser separados nem reconciliados, designam já por seu sentido o porvir da possibilidade e a impossível presença. Movimentos que a direção das duas obras poéticas nos ajuda a começar a reconhecer.
*
Entretanto, Yves Bonnefoy diz mais e eu queria, para terminar, trazer de volta suas reflexões, porque elas são sem preço. Rimbaud nomeou o fogo, afirmando ou prometendo a participação imediata na chama do que é. “Eu vivi, centelha de ouro da luz natureza.” Mas, em outro lugar:

Vis et laisse au feu 

L’obscure infortune.

[Viva e deixe ao fogo/ O obscuro infortúnio]
 
Existe então o fogo do ser, comenta Yves Bonnefoy, ou da procura do ser, mas o que é o obscuro infortúnio, qual é a infelicidade obscuramente associável ao fogo e do qual aquele que vive deve se distrair? Poderia ser que “a poesia nos empenhando inteiramente na busca da unidade, numa relação tão absoluta quanto possível com a presença mesma do ser, não faça... senão nos separar dos outros seres...”. Assim, “tendo querido... encontrar a realidade na sua profundidade, na sua substância, o poeta a perde tanto mais no que se refere a harmonia e comunhão”. Esta contradição fundamental, Rimbaud a experimentou diversamente e em níveis diferentes, segundo os movimentos próprios de sua vida e da sua busca: é a contradição nele de uma força e de uma falta; a força, é sua energia indomável, o poder de invenção, a afirmação de todos os possíveis, a infatigável esperança (a embriaguez, a Visão na sua Felicidade); a falta, é, em seguida ao “coração roubado”, a privação infinita, a miséria, o tédio, a separação, a desgraça (o sono). Mas, de novo, e a partir deste defeito essencial, a poesia, em Rimbaud, se vê confiar o dever de transformar a falta em recurso, a impossibilidade de falar que é a desgraça em um novo futuro da palavra, e a privação de amor em exigência do “amor a ser reinventado”: como se, para retomar uma outra expressão de Yves Bonnefoy, a degradação do ser em coisas inertes e produzidas (objetos, sociedade classificada, stupra, religião moralizada) devesse ser guiada e assumida pelo poeta, colocada por ele em relação com o que tem sempre de futuro na presença poética. Mas a contradição continua: contradição entre a procura pessoal de uma salvação (no sentido de uma verdade a possuir numa alma e num corpo, procura própria da comunicação) e a experiência impessoal onde se esconde o neutro, quer dizer ainda a contradição entre a necessidade de comunicação que deve se afirmar a partir da infelicidade e pela “ardente paciência” do homem sofredor, e a necessidade de comunicação que se afirma a partir do fogo e pela compreensão sábia, impaciente, estática e gloriosa do homem conquistador.
         Mas, aqui, eu creio que é necessário evocar Hölderlin para quem, como para Rimbaud, a palavra fogo e a palavra luz representaram “a felicidade” e “o obscuro infortúnio”. O que diz Hölderlin de “o imediato” que é “o impossível”, deveria nos ajudar a entrar na obscuridade deste dia que é entretanto o dia comum, comum a todos e a todo instante: é que do fogo vem toda comunicação, mas o fogo é incomunicável. Nos rememorando de um tal saber para nós necessariamente ainda muito abstrato, escutemos as palavras simples:
Feu, viens à présent!
Nous désirons
Voir le jour...
[Fogo, venha imediatamente!/ Nós desejamos/ Ver o dia...]
(N. do T.): Todas as citações, nome de poemas e de livros foram vertidos (em alguns casos, como nos títulos dos livros de Rimbaud, escolhendo dos títulos existentes em português aquele que achei o mais adequado) pelo tradutor deste ensaio.


[1] Refiro-me, aqui, aqui, ao ensaio de Yves Bonnefoy, tão próximo do assunto que ele trata na sua reflexão comedida: Rimbaud par lui-même (éditions du Seuil).
[2] Suzanne Bernard: sumário biográfico, introdução, prefácios e notas, Oeuvres de Rimbaud (Classiques Garnier)
[3] “Em Rimbaud, a dicção precede de um adeus a contradição. Sua descoberta, sua data incendiária, é a rapidez” (René Char.)

PIERROT, RIMBAUD, BLANCHOT, GODARD

Mário Alves Coutinho


        O meu livro Escrever com a câmera, a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard (Belo Horizoante, Crisálida, 2010), foi primeiro uma tese de doutorado, em literatura comparada, defendida em 2007, na Faculdade de Letras da UFMG. Durante o doutorado, tendo decidido que a base teórica da tese seria Maurice Blanchot, e cursando uma disciplina sobre este escritor, resolvi fazer uma tradução de um texto blanchotiano que tinha todas as relações possíveis com Godard em geral e Pierrot le fou em particular: L´oeuvre finale (A obra final), do livro L’entretien infini.  Neste ensaio, Blanchot escrevia sobre a obra de Rimbaud de uma maneira que antecipava exatamente a maneira e a obra Jean-Luc Godard: não é por acaso que Alain Bergala identificou Godard tão completamente com Rimbaud: ele cita um pouco Rimbaud em Pierrot le fou, mas no final das contas Rimbaud é ele (entrevista ao autor). Ao traduzir Blanchot, eu estava me apropriando, e me aproximando, de alguna maneira, do estilo godardiano de ser e fazer cinema. Com Traduzindo Maurice Blanchot, o texto que antecede a tradução, eu pensava exatamente esta relação tão direta entre Pierrot, Rimbaud, Blanchot e Godard.


Traduzindo Maurice Blanchot

Mario Alves Coutinho


[...]de uma só língua tirar duas, uma que é lida e compreendida facilmente e a outra, que permanece ignorada, muda e inacessível, e cuja ausência (a sombra deque fala Tolstoi) é tudo quanto pressentimos.
Maurice Blanchot[1]

         Traduzir Maurice Blanchot, mais especificamente “L’oeuvre finale”, ensaio sobre Arthur Rimbaud contido no livro L´entretien infini, é certamente tentar verter para o português suas idéias e percepções sobre o poeta francês: tarefa muito difícil, quando percebemos que aqui Blanchot fala de dentro,  nunca somente e tão simplesmente sobre a experiência poética rimbaudiana. Ao contrário: “A obra final” é um texto de alguém que, para falar de algo, ou sobre algo, de alguma maneira também faz a experiência deste algo, através das palavras, da forma com que escreve, dos volteios do seu estilo.
         Uma passagem da tradução que tentei realizar pode servir de exemplo para a dificuldade específica que tive de enfrentar (e que, é claro, todo tradutor de qualquer texto de qualidade encontra). Na página 424 da edição que tenho em mãos, falando de Rimbaud e de Uma temporada no inferno, ele escreve que “[...] cette heure sévère qui marquera vraiment por lui le tournant de l´histoire, la Saison étant elle-même cette parole du tournant ou tourne, d’une manière vertigineuse, le temps.”
         Num primeiro momento, consultando um dicionário francês-português (de Domingos de Azevedo), pensei que a melhor tradução para “tournant” poderia ser “virada”, e que a melhor versão para “tourne” seria “gira”. Achei que esta tradução seria fiel ao que Blanchot diz, à sua idéia, e acredito que seria correta. Mas ela não faria justiça à maneira como o autor diz o que tem a dizer: nesta passagem, ele usa a mesma palavra três vezes, sendo que, na terceira, com o verbo no presente do indicativo, portanto, ligeiramente diferente. A própria palavra “girava”, mudava, mas ainda era a mesma. Foi quando me dei conta que poderia traduzir “tournant” por reviravolta, e “tourne” por “dá volta”.  Desta maneira, também na tradução, as palavras eram quase as mesmas, mas “giravam”, “davam voltas”. Minha tentativa de fazer uma tradução o mais próximo possível de Blanchot, neste trecho específico, ficou sendo, então, “[...] este momento severo que verdadeiramente marcará para ele a reviravolta da história, a Temporada sendo ela própria esta palavra da reviravolta onde dá volta, de uma maneira vertiginosa, o tempo”.
         Outros exemplos e outros trechos deste ensaio poderiam ser citados, mas este sobre o qual me estendi dá uma idéia precisa da importância de Maurice Blanchot para a teoria literária, mas não somente: Blanchot não é um daqueles ensaístas que somente enfileiram ótimas idéias no seu texto, mas alguém que, ao fazê-lo, o faz de uma maneira sobretudo poética. No seu texto, como com qualquer grande escritor, as palavras não somente representam, ou apresentam, mas são. Blanchot, como ensaísta e teórico, é da estirpe de T. S. Eliot e Octavio Paz: ao fazer teoria da literatura, nunca deixou de fazer literatura.

II

         Uma afirmação de Blanchot em “A obra final” confirmou, para mim, algumas percepções que venho tendo a propósito das relações entre Godard, sua obra, e particularmente Pierrot le fou, por um lado, e Rimbaud, por outro. Já na parte final de seu ensaio, Blanchot escreve que “[...] a Temporada, afirmação simultânea de todas as posições contraditórias, prova efetuada da contradição mais viva [...]”. Em Pierrot le fou encontramos inúmeras citações de Uma temporada no Inferno, com o título, inclusive, sendo dito em “off” várias vezes, como um refrão, ou como o título de mais um “capítulo” das aventuras de Ferdinand e Marianne. Várias características ligariam Godard e Rimbaud, mas uma delas, que sempre vi em Godard, subitamente, através desta frase de Blanchot, tornou-se perfeitamente visível e concreta: tanto em Pierrot, como, aliás, em toda sua obra, existe uma vontade (uma determinação) de nunca ficar somente com um ponto de vista único, nem mesmo que seja o seu próprio, sobre o mundo. A todo o momento a dúvida, a contradição, o questionamento enriquecem o texto godardiano: o que vemos  é, na verdade, um texto polifônico, onde várias vozes e várias posições (muitas vezes contraditórias) dialogam incessantemente, a propósito de qualquer afirmação ou informação. Tudo se passaria como se Rimbaud e Godard pudessem ser definidos por Deleuze, quando este afirma sobre Godard: “em Godard, o ideal do saber, ideal socrático ainda presente em Rossellini, desaba: o “bom” discurso, do militante, do revolucionário, da feminista, do filósofo, do cineasta, etc., não é tratado melhor do que o mau[2]”. Ou, nas palavras de Serge Daney, citado por Deleuze, no mesmo livro: “Ao que o outro diz, asserção, proclamação, sermão, Godard responde sempre com o que um  outro outro diz. Existe sempre  um fator desconhecido em sua pedagogia: a natureza da relação que ele mantém  com seus bons discursos (que ele defende, o discurso maoísta, por exemplo) é mal definido[3]”.  O resultado final é que, como afirmou Blanchot, tanto em Uma temporada no inferno quanto em Pierrot le fou  (e, de uma maneira geral, em quase toda obra godardiana) o que temos sempre é a “afirmação simultânea de todas as posições contraditórias”. 
Referências Bibliográficas

BONNEFOY, Yves. Rimbaud par lui-même. Paris: Éditions du Seuil, 1961.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 2001.
CAMPOS, Augusto de. Rimbaud livre. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
DELEUZE, Gilles. L’image-temps, cinéma 2. Paris, Les Éditions de Minuit, 1985.
DOMINGOS DE AZEVEDO. Grande dicionário francês-português. Lisboa: Livraria Bertrand, 1952.
GODARD, Jean-Luc. Les carabiniers, Pierrot le fou et films “invisibles”(roteiros). Paris: L’Avant-Scène, 1976.
RIMBAUD, Arthur. Poésies completes. Paris: Le Livre de Poche, 1966.
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno & Iluminações.Trad. Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.




[1] Blanchot, 1997, p. 185.
[2] Deleuze, 1985, p. 224. Tradução do autor.
[3] Deleuze, 1985, p. 224. Tradução do autor.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O BRAVO GUERREIRO

          O sentimento de tempo passando e o sentimento de perda são aqueles sinais que nos trazem a sensação de envelhecimento. Ou amadurecimento para amenizar um pouco o termo. A pontuação pelas perdas, nos traz uma sensação progressiva de solidão, de vazio de referências e, ao mesmo tempo, uma carga de responsabilidade  que aponta o fato de que de agora em diante, não temos mais referências ou “endereços” para o nosso trabalho, nossas opiniões e demarcações de território.
           Como todos nós, perco a cada dia, muitos desses pontos de referência. Pessoas, opiniões, ideias, fatos, cenários, hábitos, valores vão se esfumando de forma progressiva e interminável. Agora Gustavo Dahl partiu. Já comecei a me habituar com a administração dos vazios que estas perdas nos provocam. Mas ainda é muito difícil.
          A primeira grande transformação em minha vida deu-se há cerca de quase cinqüenta anos. Quando saí de casa para assumir uma trajetória no metiê de cinema meu pai chamou Joaquim Pedro de Andrade (autor do convite para a extensão do trabalho no filme “O Padre e a Moça”, no Rio de Janeiro) em seu escritório e conversou, como pai, com ele sobre o que significava a minha partida para longe do “berço”. Joaquim foi e ficaram amigos - E me recebeu muito bem em minha nova geografia de vida. A pedido de Joaquim, naquele momento, Eduardo Escorel me acolheu em sua casa, em Botafogo, ocupada por Eduardo e seu irmão Lauro, ainda um garoto de seus quinze anos (seus pais encontravam-se em missão profissional de diplomacia, em Lima, no Peru e com eles estava a filha, Silvia). Morei com Eduardo, por uns dois meses. Ali, começava uma nova fase de vida, que teve alguns personagens ,fundamentais na minha formação e trajetória: além de Joaquim e Eduardo, conheci, imediatamente, Paulo César Saraceni, Júlio Bressane (que tinha acabado de colaborar em seu primeiro trabalho com Waltinho Lima Jr., “Menino de Engenho”) e Davi Neves. Durante as filmagens de “O Padre e a Moça”, em São Gonçalo do Rio das Pedras, distante trinta quilômetros de Diamantina, uma “delegação” foi visitar as filmagens: Luiz Carlos Barreto com Lucy e seus dois filhos Bruno e Fábio (ambos com menos de dez anos de idade – Paula era muito pequena e não foi), Davi Neves, Marília Carneiro, mulher de Mário Carneiro (o diretor de fotografia do filme e meu querido amigo), Clara (irmã de Joaquim) e seu marido, o poeta/diplomata, Chico Alvim e um casal exuberante (belo, inteligente, brilhante, carismático): Gustavo Dahl e sua mulher, Maria Lúcia (irmã de Marilia Carneiro). Todos ciceroneados por D. Gracyema, mãe de Joaquim e Clara e Sarah, mulher de Joaquim..
          Além do impacto provocado pelo deslumbramento de estar conhecendo e convivendo com pessoas tão especiais havia um sentimento de que aquele era um momento especial para o cinema brasileiro e no qual, eu começava a me sentir incluído.
          Gustavo Dahl já era conhecido, pois lia o Suplemento Literário do Estado de São Paulo, todos os sábados, quando alternava textos com Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla, neste espaço jornalístico.
          Logo que cheguei ao Rio, conheci a sua casa na rua São João Batista, dentro de uma vila modesta que, recuperada pela habilidade de seu cunhado, Mário Carneiro (arquiteto e artista plástico, entre outras coisas), tornara-se num cantinho extremamente acolhedor e requintado em pleno bairro de Botafogo, no Rio.
          Logo Escorel e Daví Neves “conspiraram” e me colocaram na equipe do filme que Gustavo iria realizar, em seguida. O Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade havia, algum tempo antes, encomendado um roteiro sobre Aleijadinho a seu grande amigo e conhecedor da arte barroca colonial mineira e seus personagens, Lúcio Costa.
          A crônica deste projeto é complicada: Davi havia sido chamado por Dr. Rodrigo para produzir o filme que teria apoios diversos (UNESCO, Itamaraty, SPHAN, etc.). No processo de produção seria utilizado o equipamento que o “Patrimônio” (o SPHAN) havia “herdado” das funções da oficina que Arne Sucksdorf aplicou no Rio, alguns anos antes. Sucksdorf trouxe para o Rio o top tecnológico em termos de equipamento cinematográfico (uma câmera Arriflex II-B, um Nagra III, um jogo de lentes com uma 18,5 mm e uma teleobjetiva poderosa, de 400 mm, entre outras, uma moviola “flat bed”, Steenbeck, um fotômetro Spectra Combi, um kit de iluminação Colortran e outros “luxos”). Este equipamento foi levado por Joaquim para Diamantina para ser utilizado nas filmagens de “O Padre e a Moça”. Mas havia sido descoberta, antes das filmagens, nos porões do Palácio da Liberdade, de Belo Horizonte, uma unidade de filmagem igualmente sofisticada, importada pelos auxiliares de JK (José Silva?) e nunca utilizada: uma Cameflex (uma câmera desenhada pelo M. André Coutant, para a Éclair, francesa) que foi devidamente restaurada para a utilização no filme de Joaquim. Gustavo estava em São Gonçalo, durante a excursão do grupo às filmagens, para levar o equipamento que seria utilizado nas filmagens do “Aleijadinho”, em Ouro Preto.
          Por razões que só Davi e Gustavo poderiam esclarecer, foi realizado um filme de curta metragem (uma pequena obra prima), com um tom poético e elegante e que acabou por ser o primeiro filme de Gustavo, no Brasil (tinha já um trabalho de formação, realizado em Roma, para o Centro Sperimentale di Cinematografia), “Em Busca do Ouro”, com fotografia de Pedrinho Moraes. Dr. Rodrigo não ficou satisfeito e cobrou de Davi o filme sobre o Aleijadinho. Davi teve de mobilizar outros recursos e mandou Gustavo para Minas para realizar o projeto comprometido. E neste momento, Davi me chamou para ser o diretor de produção do filme. Fomos para Ouro Preto, a primeira e mais longa escala da produção, acompanhados por João Carlos Horta (posteriormente o fotógrafo de meu filme, “Perdidos e Malditos”), Dib Lutfi e dois auxiliares (Lídio, eletricista e o maquinista, “Pé de Chumbo”). Ali ficamos por quase um mês numa vivência que nos aproximou para sempre. Ouro Preto era uma cidade ainda calma e com menos assédio turístico. Ficamos hospedados na casa na estrada das Lajes, de Lili Corrêa de Araújo. Eram os tempos do Calabouço, um bar instalado num porão da rua Direita, de uma canadense (a Jerry) e sua sócia, Ninita.
          Ali nos tornamos muito próximos e amigos. Nossa comunicação cinematográfica foi se descortinando em direção a muitas afinidades. Inclusive com um grande aprendizado de minha parte. O filme se frustrou: filmamos muito, mas num determinado momento, um impasse técnico impediu que Gustavo continuasse o filme, decidindo interromper o trabalho para retomá-lo, adiante. Isso nunca aconteceu. Joaquim Pedro, anos depois, realizou o filme sobre o roteiro de Lúcio Costa, com dinheiro do Departamento do Filme Cultural, da Embrafilme. Um belíssimo trabalho, igualmente com Pedrinho Moraes como fotógrafo.
          Desse momento em diante, Gustavo me “adotou”. Começou a preparação para as filmagens de “O Bravo Guerreiro” e me convidou para ser seu assistente. Naquele mesmo tempo, Paulo César Saraceni já contava comigo como seu assistente em “Capitu” (na preparação). Simultaneamente naquele momento, a ação da Tekla Filmes Ltda. (minha produtora com Maurício Gomes Leite) começava na produção de alguns projetos nossos. Não dei conta de continuar como assistente de Gustavo e Paulo César.
          No ano passado o CTAv (o Centro Técnico Audiovisual, do Ministério da Cultura) me convocou para dar um depoimento sobre Alberto Cavalcanti e a produção de seu último filme, “Um Homem e o Cinema” (duas partes), que está sendo preparado para lançamento em DVD. Passei uma tarde inesquecível com Gustavo e Joãozinho (João Carlos Rodrigues), entre as gravações. Uma atualização das nossas existências parecia antecipar uma despedida. João me encomendou, por sugestão de Gustavo, um artigo sobre a “minha” cinefilia. Tive o prazer de colaborar na Filme Cultura falando sobre a trajetória da minha matriz de formação cinematográfica: o CEC (Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais).
          Na mesma publicação, um primoroso artigo de Gustavo (uma primeira parte, que foi completada, no número de Filme Cultura, subseqüente), sobre Gervásio Rubem Biáfora, me fez rever uma histórica antipatia por esta figura e sua “turma”. Como estamos falando do efeito dos anos sobre as nossas cabeças, nada mais próprio que reexaminarmos as causas de idiossincrasias que foram tão intensamente vividas. E o artigo de Gustavo, brilhante como sempre, me apresentou, sem nenhuma complacência, o perfil desconhecido (embora suspeitado) de um homem que havia vivido o cinema intensamente. Desde cedo tinha uma resistência forte às preferências cinematográficas de Biáfora (mas não eram tantas, pois várias de suas paixões cinematográficas eram admiradas por mim, na matriz de uma formação clássica do cinema), sobretudo naquilo que se referia ao cinema brasileiro (o cinema de Walter Hugo Khouri, o dele próprio e de seus discípulos). Ao nos apresentar Biáfora, Gustavo revela a sua própria trajetória formacional no cinema, que perpassa grandes tendências críticas e estéticas formadoras do cinema contemporâneo (sobretudo o brasileiro, do qual Gustavo foi protagonista naquilo que veio a se denominar “Cinema Novo”). Suas afinidades com Paulo César Saraceni, de quem foi “irmão” e companheiro na “aventura” romana, do Centro Sperimentale, vão além de uma leitura metodológica da obra de cada um. Como Paulo César, Gustavo vem de uma cinefilia “visceral” (mas não menos consciente e intelectual) moldada por Biáfora (e depois aproximada a Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, o “Presidente”, entre outros). Paulo César é a ligação entre o grupo do Cine Clube Chaplin (Octávio de Faria, Plínio Sussekind da Rocha, Vinícius de Moraes, Saulo Pereira de Melo e seu grande colaborador e amigo, Lúcio Cardoso) e o neorrealismo rosselliniano (onde os dois, Paulo e Gustavo) foram buscar a influência que os tornou realizadores com uma personalidade definida. Companheiros de uma geração que detonou o Cinema Novo (sob a influência das propostas neorrealistas de Nelson Pereira dos Santos ou da irmandade de Glauber Rocha) estavam nos lugares estratégicos onde o fenômeno começou a se estruturar: Roma, início dos anos sessenta do século passado, com Arnaldo Carrilho trabalhando na embaixada brasileira, na Piazza Navona e dando cobertura aos sonhos de um novo projeto para o cinema brasileiro. O grupo, do qual Gustavo era um “delfim”, era formado por: Paulo César, Geraldo Magalhães, Gianni Amico, Marco Bellochio e um menino, protegido por Gianni Amico, que começava a despontar, Bernardo Bertolucci (“apadrinhado” igualmente por Píer Paolo Pasollini, amigo de seu pai e autor de argumentos para seus primeiros filmes). Gianni e suas relações com o Padre Arpa (o “guru” do Fellini, cujas relações com a Santa Madre Igreja eram complexas) levaram à Europa, pela primeira vez, a primeira fornada do Cinema Novo, em Gênova. Daí surge o famoso manifesto da “Estética da Fome”, de Glauber. Joaquim andava por perto (no IDHEC ou no Museu do Homem, com Rouch, em Paris). Aí surge o “pacto fatal” que cria o Cinema Novo. A cabeça analítica, sofisticada e brilhante de Gustavo é o ponto de inserção teórica da nova proposta para o cinema. A Nouvelle Vague também estava explodindo em sua busca de caminhos (Chabrol, Truffaut, Godard, Rivette, Rohmer, Rozier, Brocca, Molinaro, etc.) em paralelo com a “Rive Gauche” (Resnais, Marker, Démy, Varda, etc.), antecedidos por Becker, Melville, Vadim e Malle (para não dizer Clément, em seu “Sol Por Testemunha”, onde tenta exorcizar os ataques dos “jovens turcos” dos Cahiers du Cinema, ao seu cinema). Lá estava Gustavo Dahl, no “olho do furacão”.
          Mas o que mais impressionou (e impressiona) em Gustavo foi o seu desprendimento em deixar para o segundo plano sua trajetória de realizador, a meu ver extremamente competente (“O Bravo Guerreiro” é uma obra prima, seguida por “Uirá”, “Tensão no Rio” e muitos curtos rigorosos, talentosos e, sobretudo, inteligentes). Gustavo virou um quadro executivo do cinema brasileiro: assumiu a Superintendência de Comercialização da Embrafilme e liderou, com Roberto Farias, a grande revolução de mercado do Cinema Novo. Provou o óbvio: o cinema brasileiro precisava de investimento e um tratamento diferenciado para chegar ao seu público. Sua equipe se desdobrou em figuras que passaram a conhecedores profundos do mercado brasileiro e dos segredos do cinema (Marco Aurélio Marcondes, Aurelino Machado, Jorge Pellegrino, entre outros). E Gustavo não voltou àquilo que, a meu ver estava mais preparado: o processo criativo.
          O cinema brasileiro agradece. Gustavo sempre esteve no protagonismo das ações políticas do nosso cinema (CONCINE, CNDA, etc.). Mas Gustavo fez um “projeto de cinema”. Contribuiu para a sua construção, decisivamente.
          Em 1999, tentávamos, aqui em Minas, discutir novas estratégias para o cinema e criamos, em Belo Horizonte, durante o Panorama Mundial do Cinema Independente (sugestão do grande amigo José Carlos Avellar, então na Riofilme), um foro de debates sobre a situação da produção no país, recém saído do vácuo da extinção da Embrafilme/CONCINE. Gustavo estava ausente do grande debate do cinema brasileiro daquele momento. Tive então uma idéia: vamos buscar Gustavo e chamá-lo para capitanear um novo processo reflexivo para os novos tempos. Fui descobri-lo (o Diogo, seu filho adotivo, me deu o seu telefone) em Trancoso, na Bahia, retirado em um “exílio” prazeroso (quem diria que ele iria morrer justo lá). Gustavo topou na hora e, convidado para ficar por dois dias, acabou por ficar a semana inteira, numa convivência prazerosa e rica de trocas de informações.
          Pouco depois o pessoal do Rio Grande do Sul, tomou a iniciativa de realização do III Congresso Brasileiro de Cinema, de onde Gustavo ressurgiu como a liderança que criou a ANCINE, dirigida e implantada sob a sua liderança.
          Os pais vão indo, as afinidades próximas vão partindo (Joaquim, Davi, Leon, Glauber, Rogério, Jacques do Prado Brandão, Maurício e Ricardo Gomes Leite, Guará, Schubert Magalhães, Geraldo Magalhães e muitos outros) e vamos ficando sem referências. Os tempos mudam e as missões se cumprem. Há outros personagens na cena. Que venham. Os tempos passam. Mas não percamos de vista exemplos e modelos que deram as deixas para o que está acontecendo por aí. Gustavo Dahl vai e deixa um exemplo de ação e militância generosa, potente e inteligente, no cinema brasileiro. Mas a lacuna pessoal da impossibilidade de conviver com a sua inteligência, seu brilho, seu humor, seu charme, é muito grande. Que assim seja. Vamos ter de viver com isso. Até quando? Meu micro chip já está programado. Só não sei decodificá-lo. É melhor assim. 
Geraldo Veloso
27/6/2011