terça-feira, 14 de agosto de 2012

CEC 60 ANOS - ENQUETE


Sócio: Paulo Augusto Gomes

1. O que é o CEC?

Durante muito tempo, o CEC foi o principal centro de discussões sobre o cinema em Minas Gerais. Reunia pessoas de várias gerações, que tinham por costume refletir - sempre com um enorme embasamento - sobre problemas e aspectos diversos da criação cinematográfica. As gerações que chegavam se beneficiavam do muito que havia sido discutido sobre o tema; tomavam a bandeira e seguiam em frente. Eu fui das últimas gerações da primeira fase (que acabou quando o AI-5 da ditadura interrompeu o funcionamento do CEC), só peguei a fase da Imprensa Oficial. Era tímido e não conhecia quase ninguém; queria mesmo era aprender. Consegui isso vendo filmes fantásticos, sempre apresentados por gente que entendia do assunto. Lembro-me, nessa fase, por exemplo, de "Paixões que Alucinam" (Shock Corridor) de Samuel Fuller, "Os Pássaros" (The Birds) de Alfred Hitchcock e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha, três sessões inesquecíveis. Mas eu não saía após essas sessões para encontrar pessoas em uma mesa de bar, onde as conversas fossem ampliadas. Isso se deu muito lentamente, à medida em que fui me aproximando dos nomes que então estavam à frente do CEC - e que depois se tornaram amigos muito queridos. No meio-tempo, eu comprava livros, frequentava a biblioteca do CEC e lia muito. Minha opinião era muito precária, embasada em obviedades.

2. Fale do CEC que você viveu.

Do que foi dito em resposta à primeira pergunta, vê-se que eu vivi relativamente pouco o CEC. Ia às sessões, mas não tinha com quem trocar ideias. Eu pensava em fazer filmes curtos em 16 milímetros e cheguei a escrever um roteiro chamado "O Disco Voador". Falava de alucinações coletivas e, é claro, só poderia ser muito ruim. Eu era colega de Pedro Coimbra Pádua (que fez um documentário chamado "São Tomé das Letras) e Maurício Andrés no Colégio Universitário e tínhamos planos comuns. Por intermédio deles, fui me aproximando da realização cinematográfica e cheguei a fazer parte, como figurante, de "A Festa" de Luiz Alberto Sartori, fotografado por Tiago Veloso, um dos nomes destacados do CEC. E escrevia um pouco, o que tornou a aproximação com os cequianos mais fácil. Mas isso tomou algum tempo, devido à minha inibição, que custei a vencer. Depois que o CEC voltou, já na década de 80, aí eu estava mais adiantado: fazia parte de uma coluna semanal no "Estado de Minas", chamada "Júri de Cinema", claramente inspirada no júri de cotações do "Jornal do Brasil". Escrevia regularmente, textos dos quais não tenho nenhum orgulho, e ajudava as novas diretorias, inclusive ministrando cursos que formavam novos quadros. Na virada do milênio, aí eu já era quem eu sou atualmente. Já havia dirigido alguns curtas-metragens em 35 milímetros, tinha uma produtora de cinema. E meu - já àquela época - longo tempo de crítica fez com que eu fosse convidado por Mário Alves Coutinho para, ao lado dele, co-editar um livro de depoimentos sobre o CEC. Foi algo muito prazeroso; mantive-me em contato com pessoas que sempre admirei, como Guy de Almeida (para citar apenas um  nome) e creio que o livro passou a quem o leu um apanhado bastante abrangente sobre o CEC.

3. O que era o cinema quando o CEC surgiu? O que é o cinema hoje?

O mundo todo evoluiu muito desde que o CEC apareceu. Naquele tempo, o cinema tinha grande espaço, graças ao star system norte-americano, mas credibilidade limitada, pois as demais artes já se achavam bem desenvolvidas. Além do mais, a televisão chegava para disputar o primado da imagem em movimento. Houve, graças à discussão do pensamento cinematográfico, uma merecida e devida valorização. Nisso, a crítica francesa teve destaque especial. A leitura de revistas como os "Cahiers du Cinéma" e "Positif" tornou-se obrigatória. Os autores cinematográficos passaram a merecer - e receber - todo respeito. Grande mudança aconteceu no ato de filmar: câmeras tornaram-se menores e mais ágeis, o mesmo se deu em relação ao registro do som. Ultimamente, as coisas tomaram um ritmo assustador: basta você ter um celular para poder fazer um longa-metragem. Que diferença do tempo em que tínhamos que carregar latas de filmes pelas ruas para ver as  obrass que desejávamos... Acho que o cinema que me marcou está ligado àquela época. Claro que hoje existem grandes autores, mas não creio que na mesma intensidade de antes. Creio que atualmente vivemos um período em que a criação cinematográfica perdeu energia, mas muitos grandes autores - e Godard é a referência básica - continuam em atividade, se bem que com menos frequência.

4. Na tua visão, o que mudou na cinefilia, de sessenta anos para cá?

Muita coisa. Lembro-me do grande Buñuel que, em suas memórias, disse que, antes, três condições eram necessárias para se fruir toda arte: esperança, luta e conquista. E acrescentava que hoje em dia, com a gente tendo acesso imediato a toda forma de arte (ele falava especificamente da música), muito se perdeu. Hoje, eu mesmo vou muito pouco ao cinema; os filmes mais recentes ficam disponíveis com rapidez em DVD e toda aquela complicação de antes, com você tendo que sair de casa, pagar taxi ou estacionamento e outras providências, praticamente acabou. Vejo o que quero em casa, à hora que quero, parando sempre que necessário. Mudou tudo, ora. Não sou daqueles que só sabem ver cinema em telas grandes; o conforto caseiro me agrada e assim continuo me relacionando com o cinema. Mas é óbvio que isso limita muito os debates de antes; atualmente, só os tenho com meus amigos mais próximos - mas não acho que as gerações mais novas estejam tão interessadas em longas conversas. Vejo-me como um dinossauro, alguém de outra época, que ainda continua preso a valores aos quais os mais novos não parecem se ligar. Talvez os festivais de cinema ocupem agora esse lugar que o CEC comandou por tanto tempo. Hoje, existem também cursos de cinema em nível universitário, aos quais não dou maior  importância. Esnobismo meu? É possível.

5. Quais foram os pontos doutrinários, teóricos e estéticos que você destaca, na trajetória do CEC? Quais os que mais  exerceram, sobre você, alguma influência (ou fascinação)?

Antes de qualquer outro, a revisão do método crítico, cuja discussão Cyro Siqueira colocou em prática nas páginas da "Revista de Cinema". Em seguida, a chegada da Nouvelle Vague e, um tempo depois, do Cinema Novo, que os cequianos acompanharam com interesse, embora nem todos: houve, inclusive entre os mestres e fundadores do CEC, quem não aplaudisse nem uma nem outro, a não ser perifericamente. Godard, só "Acossado"; o que ele produziu depois não interessou muito àquelas pessoas. Como eu me encantei, tanto com uma como com o outro, desde o início, isso me levou a uma tomada de posição à qual venho me mantendo fiel, ao longo da minha vida. E, claro, eu gostava do cinema americano dos grandes mestres - de Ford, Hawks, Vidor e Walsh, aos que, naquele tempo, encontravam-se em pleno apogeu: Fuller, Ray, Rossen e tantos outros. No meio, Orson Welles, cujo trabalho abriu tantas portas para mim. Eram sempre objeto de discussões no âmbito do CEC, das quais eu raramente participava.

6. O que você legou, da sua vivência no CEC, para as atividades profissionais que você exerceu (ou exerce)?

Tudo o que fiz em cinema - filmes, ensaios, livros, cursos que lecionei - desde então tem a clara marca do CEC. Não se passa por uma entidade como essa impunemente. Procurei manter minha mente livre e o aprendizado no CEC foi de enorme importância. Considero-me feliz por ter feito (e continuar a fazer) parte dele. O CEC foi minha verdadeira escola de cinema. Sem gente pedante, sem donos da verdade, sem impositores. Esse não era o espírito do CEC, embora curiosamente eu ainda tivesse medo, naqueles dias, de expor minhas opiniões. Achava - olhe que equívoco - que havia uma "opinião" geral, que me cabia seguir. Chega a ser engraçado ser assim em uma entidade que incentivava a livre expressão de ideias. Eu é que não queria parecer burro.

7. Cite alguns personagens com os quais conviveu na sua vivência do CEC.
Já citei Guy de Almeida, que me impressionava por sua condição de livre pensador - logo ele, que sofreu por suas posições políticas no tempo da ditadura. Acrescento os nomes de Victor de Almeida, Newton Silva, Jacques do Prado Brandão (Cyro Siqueira era mais inatingível), Ronaldo de Noronha, com os quais tive uma convivência maior. Como eu não me aproximava muito daqueles de minha faixa etária, perdi excelentes oportunidades de antecipar, por alguns anos, meu aprendizado, que se prolonga até hoje. Ricardo Gomes Leite, Mário Alves Coutinho, Tiago e Geraldo Veloso, todos tiveram (e têm) influência forte na minha vida, mas com eles convivi mais fora que dentro do CEC. E, fora do CEC, minha grande influência, exercida tanto em termos pessoais como através de leituras, foi Paulo Emílio Salles Gomes. Considero-me tão discípulo dele como a geração de alunos que conheci em São Paulo, da qual fazem parte Raquel Gerber, Ismail Xavier, Carlos Roberto de Souza e Alain Fresnot. Claro que não posso esquecer os nomes de Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, que foram colegas de magistério de Paulo Emílio.

8. O CEC foi criado sob a inspiração do exercício crítico; a construção de um cinema brasileiro a partir da formação no CEC "traiu" a sua vocação primeira?

Absolutamente não. Eu mesmo sou um cequiano que fez cinema - e, comigo, tantos outros. Para mim, o pensamento cinematográfico sempre esteve ligado ao que eu gostaria de fazer um dia, passando para trás da câmera. Foi o tipo de aprendizado que me valeu muito. Sei que Cyro e mais alguns achavam no mínimo estranho que se quisesse fazer cinema. Respeito o ponto de vista deles, até entendo as razões que estão por trás dessa decisão, mas não era, nunca foi, o meu caso. Tenho orgulho em dizer que meus filmes nasceram daquela vivência no CEC. Eu tive uma formação teórica no CEC que, mais tarde, me levou a fazer cinema da maneira que faço. Portanto, meus filmes são obras do CEC. Equivocadas, se assim quiserem meus críticos, mas minhas.

9. Examinando o apanhado de títulos e diretores brasileiros que passaram pelo CEC (ou se aproximaram de diversas formas com ele (CEC), como você vê a possibilidade de existência de um "cinema do CEC"?

Existe isto? Ou a constatação é óbvia: a diversidade da produção indicada traduz a multiplicidade de influências que pairavam e cruzavam o CEC, enquanto espaço de vivência do cinema? Filmes como o meu "Idolatrada" e "O Homem do Corpo Fechado" de Schubert Magalhães ou "Perdidos e Malditos" deixam evidente a diversidade de opiniões, informações e posicionamentos que marcava o CEC. Não ouso comparar meu longa com nenhum dos dois ou quaisquer outros filmes, mas tenho certeza de que o bom nível que atingi surgiu porque levei a sério as lições que o CEC me ensinou. Mas são obras tão diferentes que, por si só, falam mais sobre a liberdade de pensamento que havia na entidade que qualquer texto teórico. Claro também que sempre houve e haverá, em lugares como o CEC, bons e maus filmes. Mas também essa noção de "bom" ou "mau" variava de pessoa para pessoa, entre os cequianos.

10. Você acredita numa "mística do CEC"?

Mística em que sentido? Não costumo idealizar ou pensar em um CEC imaginário ou mítico, que automaticamente formava grandes quadros. Houve muita gente de menor importância cultural, que frequentou o cineclube. O que o CEC representou para mim foi um movimento em termos amplos, de amor ao cinema, que gerou belos frutos, de todos os tipos. Ter feito parte dele, ainda que discreta, representou para mim um momento feliz de vida, pelo qual sou muito grato.