segunda-feira, 15 de outubro de 2012

CEC 60 ANOS - ENQUETE

Sócio: Ronaldo de Noronha

1. O que é o CEC?
 
O CEC foi e é uma entidade cara a de muitos de nós, que recusamos a morte do cine clubismo feito com desprendimento e entusiasmo. É a nossa herança pessoal e cultural, preciosidade imaterial que levamos para toda parte onde vamos. Um espaço de luta contra os obstáculos e os desestímulos impostos pelos mundos da Política e do Dinheiro.
Sabemos que esta recusa, para continuar a ser efetiva e continuar a dar frutos, depende da paixão e do trabalho de amantes do cinema e da liberdade que teimam em lutar pelas boas causas cinematográficas.

2. Fale do CEC que você viveu.
 
O CEC, nos anos 60, e também depois, no fim dos 70 e começo dos 80 (tempos em que estive pessoalmente engajado em fazê-lo viver), era um lugar para encontrar pessoas que se gostavam e amavam o cinema, o riso e a boa conversa. Um lugar de sociabilidade, ancorado em entendimentos compartilhados sobre o poder e a fascinação dos filmes, pela capacidade deles de gerarem novas ideias, sensibilidades e conhecimentos. Um lugar para permitir e favorecer ações coletivas visando revoluções nas formas de viver, utopias que, mesmo não ocorrendo como queríamos, nunca deixaram de nos inspirar.

3. O que era o cinema quando o CEC surgiu? O que é o cinema hoje?

O cinema pelo qual lutou o CEC, nos anos 1950 e 60, era um ser vivo, mas sufocado, que escavava o chão da mesmice e da opressão política e econômica e se abria para uma coisa que, dentro dele, ao mesmo tempo que vinda do mundo lá fora, clamava pelo direito de ser livre e verdadeiro: um ser que, ao desabrochar sob os nomes de neo-realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo, mostrou que o cinema podia ser um instrumento de pensamento e de emancipação pessoal e política.
Hoje, nos anos 2010, o cinema continua a sofrer as mesmas necessidades de liberdade e invenção, mas de outras maneiras, enfrentando as mesmas/outras formas de escravidão. O sistema opressivo, estandardizado, monopolista dos estúdios da era de ouro de Hollywood ainda impera, é tão forte quanto nos idos de Bazin, Jacques e Cyro, embora muito maior, isto é, literalmente mundializado. Os Rosselinis, os Welles, os Eisensteins de outrora agora se chamam Kiarostami, Kar-Wai, Malick, Lynch, Coutinho. Unindo essas gerações, distantes no tempo, mas não na inspiração e no amor à arte do cinema, como ponte e passagem, Godard ainda persiste.
Nós, cequianos, com nossa teimosia e vontade quixotescas, persistimos também.

4. Na tua visão, o que mudou na cinefilia, de sessenta anos para cá? 

Antes, a cinefilia era mais rara e, por isso mesmo, mais preciosa e cultivada, dadas as dificuldades de ver bons filmes com frequência, inerentes ao sistema de distribuição e exibição da época (pré-TV, pré-DVD, pré Internet). Hoje, ver filmes novos ou antigos é mais fácil e, portanto, mais banal; mas, por isso mesmo, é uma atividade mais bem informada e amparada pela documentação, escrita e audiovisual.
Mas, mutadismutandi, a cinefilia é ainda o mesmo amor de sempre pelo cinema enquanto revelador do que somos e do que não somos, do mundo enquanto realidade e configuração de possibilidades.

5. Quais foram os pontos doutrinários, teóricos e estéticos que você destaca, na trajetória do CEC? Quais os que mais  exerceram, sobre você, alguma influência (ou fascinação)?
 
Citando sem ordem genética ou de importância:
o cinema enquanto fantasia e sonho;
o cinema como documento do real;
o cinema enquanto expressão pessoal de autores;
o cinema como invenção do futuro;
o cinema enquanto descoberta de diferenças.
Todos esses aspectos do cinema me fascinaram e influenciaram – mesmo que alguns pareçam antinômicos a outros.

6. O que você legou, da sua vivência no CEC, para as atividades profissionais que você exerceu (ou exerce)?
 
Depois da “morte” eventual do CEC em 1968, tornei-me professor de sociologia, disciplina que estudei durante os anos 60; depois que ele “renasceu”, em 1977, voltei a reunir na mesma respiração e inspiração o cinema e as ciências sociais. Meu campo de investigação e ensino, hoje, é a sociologia da cultura e da arte.
Diria que o cinema me fez um sociólogo mais livre, menos dogmático; e que a sociologia me fez ver e pensar os filmes com uma consciência mais ampla, mais rica.

7. Cite alguns personagens com os quais conviveu na sua vivência do CEC.
 
Jacques do Prado Brandão, Maurício Gomes Leite, José Haroldo Pereira, Cyro Siqueira, Victor de Almeida, Paulo Arbex, entre os mais velhos, que nos precederam como pioneiros do cine clubismo e da crítica.
Geraldo Veloso, Carlos Alberto Prates Correia, Ricardo Gomes Leite, Moisés Kendler, Flávio Werneck, Geraldo Magalhães, Mário Alves Coutinho, Paulo Augusto Gomes, colegas e amigos da minha geração, ou mais ou menos.
Alcino Leite Neto, Ivan Cézar Cláudio, Marcelo Castilho Avelar, Carlos Henrique Santiago, da geração 70-80, que tivemos o prazer de ajudar a formar e ver belamente frutificar.

8. O CEC foi criado sob a inspiração do exercício crítico; a construção de um cinema brasileiro a partir da formação no CEC "traiu" a sua vocação primeira?
 
De modo algum – todos aqueles amigos e companheiros de muitas jornadas que se tornaram cineastas, montadores, produtores etc. levaram para prática de fazer filmes o conhecimento do cinema do passado e do presente, e do exercício crítico sobre este cinema, que os ajudaram a fazer um cinema novo, inventivo e autoconsciente.

9. Examinando o apanhado de títulos e diretores brasileiros que passaram pelo CEC (ou se aproximaram de diversas formas com ele (CEC), como você vê a possibilidade de existência de um "cinema do CEC"?
 
Não penso que houve um “cinema do CEC”, nem “cinema mineiro” propriamente ditos. Os realizadores de filmes que passaram pelo CEC, militando no cine clubismo ou não, foram pessoas do seu tempo e lugar: mineiros, brasileiros, cosmopolitas. As “influências” que sofreram ou adotaram foram as que vieram das suas épocas, dos lugares onde viveram, das pessoas que encontraram pelo mundo; seus engajamentos foram com a contemporaneidade, com o mundo moderno, nos quais o CEC se situou diversamente, quer dizer, de acordo com cada um deles.

10. Você acredita numa "mística do CEC"?
 
Depende do sentido que se der à expressão. Para mim, só há “mística” quando algum ser ou coisa são destacados do fundo das coisas banais e são recobertos por uma aura de exceção, de excepcionalidade. Em parte, é uma ilusão benévola, mas não só: é também um reconhecimento de ter havido no passado momentos mágicos que, para nós, se tornaram caros, por amor ao cinema e aos feitos heroicos, que acreditamos ser preciso conservar na memória e continuar a reproduzir no presente e no futuro.
Penso que as várias gerações de cequianos, ao longo destas décadas, valorizaram a herança recebida dos pioneiros já citados – derivada da grandeza deles – e fizeram dela algo de valioso e intrinsecamente honrável, procurando estar à altura do que antes foi feito.

Ronaldo de Noronha é professor de Sociologia da Cultura, da UFMG, crítico de cinema, pesquisador e membro de Conselho Curador do CEC

CEC 60 ANOS - ENQUETE

Dois tempos do CEC

Sócio: Victor de Almeida


1. O Centro de Estudos Cinematográficos foi fundado no início da década de 1950 em Belo Horizonte. Então, a capital era uma cidade com muitas limitações culturais - na acepção de seus críticos mais cáusticos, tratava-se de uma aldeia com bonde. Para superar (e sobreviver ao) seu acanhamento cultural, as pessoas se reuniam em grupos. Havia grupos para as diferentes expressões artísticas e culturais, uns mais, outros menos organizados, que se reuniam em torno de seus interesses particulares como forma de se auto-alimentarem de informações mais atualizadas a respeito do que estava sendo feito no Brasil e no mundo.
O CEC se notabilizou por reunir o grupo de pessoas que, embora participassem eventualmente de outras iniciativas culturais, descobriam no cinema uma forma mais completa de ver o mundo, pela capacidade dessa arte de absorver todas as demais. Então, o cinema era o principal, senão único, lazer cultural praticado pela maioria da população. Alguns cidadãos mais atentos observaram que, do meio dos filmes programados semanalmente na cidade, havia obras que se destacavam pela sua originalidade. O cinema era um produto industrial, feito para a diversão das massas, mas também era uma forma de expressão artística. A crítica de cinema, exercida primeiro pelos irmãos Santos Pereira, depois por Cyro Siqueira, veio separar do volume de filmes produzidos pela indústria, sobretudo a de Hollywood, aqueles que, a seu juízo, mereciam ser melhor considerados pelos espectadores mais exigentes. Por isso, durante muito tempo, o exercício crítico provocou uma discordância entre os críticos e os jornais que os abrigavam e o público e os exibidores cinematográficos sobre as avaliações feitas por essas duas partes a respeito da qualidade dos filmes.
O CEC veio estabelecer um espaço próprio para aqueles filmes que não só a crítica, mas os espectadores mais críticos, destacavam da produção industrial norte-americana e das cinematografias lateriais, sobretudo européia. O cineclube concedeu tela para esses filmes e reuniu um auditório interessado em participar de estudos mais ou menos sistematizados a respeito dessas obras e de seus autores, bem como das cinematografias nacionais e seus representantes que mereciam atenção no quadro geral da produção cinematográfica mundial.
Durante pelo menos duas décadas, nos anos 1950 e início dos anos 1960, o CEC foi essa "janela para o mundo", atraindo pessoas com interesse específico no cinema, mas também militantes de outros grupos culturais, como da literatura, das artes plásticas, da música, do teatro, do jornalismo, da política etc. Para isso contribuiu, sem dúvida, a localização do CEC, no meio de um corredor formado, na Rua Curitiba, pelo cinema Art-Palácio (que exibia filmes italianos e também alemães, japoneses, indianos, mais tarde da nouvelle-vague e Antonioni), os jornais "Folha de Minas" e "Binômio", os centros de cultura italiana e portuguesa e, por fim, a Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.
O cineclube teve a capacidade de aglutinar elementos de quase todos os grupos - com a exceção daqueles mais tradicionais -, incluídos os católicos, que também viam no cinema um poderoso meio de influência, mas que se sentiam pouco à vontade entre intelectuais sensíveis ao existencialismo e ao marxismo; por isso, procuravam desenvolver seus próprios espaços de exibição e discussão.
A circunstância histórica de promover num ambiente acanhado um meio de expressão em ascensão no mundo atraiu ao CEC sucessivas gerações de jovens, principalmente, interessados em se incorporar a um acontecimento sem similar na cidade e que lhes permitia descortinar horizontes muito mais amplos. Além do cinema, o CEC promoveu, nas relações sociais que se estabeleceram entre seus participantes, o contato de muitos de seus associados com o que havia de mais atual no mundo na área da literatura, do teatro, das artes plásticas, da música, da política etc. Muitos frequentavam o CEC para se arejar intelectualmente por meio do cinema, mas muitos outros tiveram a sorte de dar nele o primeiro passo para se profissionalizarem na literatura, no jornalismo e no próprio cinema.     
O cineclube foi, indubitavelmente, um importante espaço de sociabilidade e conhecimento não só da arte cinematográfica, mas de tudo o que de mais avançado pudesse interessar a "intelligentzia" local. Ele foi um agente poderoso de transformação de muitas pessoas, libertando-as do ambiente limitado de uma Belo Horizonte provinciana para lhes apresentar outras realidades mais complexas e ricas. Só isso basta para definir a importância do CEC e a influência que teve, social e culturalmente, na formação de várias gerações de mineiros.

2.  Outro momento importante na vida do CEC foi quando o cineclube, depois de quase desaparecer, em consequência dos acontecimentos decorrentes do golpe de 1964 (muitos cequianos passaram meses na prisão), ressurgiu em 1965, realizando suas sessões cinematográficas dos sábados à noite no cinema da Imprensa Oficial. Corria então o governo Israel Pinheiro, que tinha sido eleito a contragosto do regime militar, e o CEC, dirigido por uma nova geração de cinéfilos, aproveitava a réstia de luz que ainda havia do regime abatido pelo golpe para manter viva a discussão cultural.
Com os filmes que circulavam no país, brasileiros e estrangeiros, não obstante a censura, o CEC se transformou então num vigoroso fórum de discussões com o qual confrontava o obscurantismo ascendente. Não obstante os percalços, isso durou até 1968, tendo sido realçado, numa entrevista, pela presidente Dilma Rousseff, quando candidata, como tendo sido essencial à sua formação. Moradora em Belo Horizonte, aluna do Colégio Estadual Central, a presidente era uma das frequentadoras das sessões da Imprensa Oficial, onde teve a oportunidade de assistir a "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, e também a filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Acertadamente, a presidente salienta que essa paixão pelo cinema tinha um sentido subversivo, como eram considerados então pelo regime todos os atos que de alguma forma não se submetiam à repressão e à censura à cultura.
Significativa desse período foi a exibição, na Imprensa Oficial, em 27 de maio de 1967, de um filme curto do cequiano Maurício Gomes Leite. Então trabalhando no Rio de Janeiro como jornalista. Ironicamente intitulado "O Velho e o Novo", o filme era uma homenagem ao crítico literário austríaco, naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux, que combatia a ditadura nas páginas do "Correio da Manhã" e que veio assistir à apresentação, junto com os escritores Antonio Callado e Carlos Heitor Cony e o jornalista Márcio Moreira Alves. Callado, Cony e Moreira Alves tinham sido presos, em 1965, junto com outros intelectuais brasileiros, quando denunciavam, em frente ao hotel Glória, no Rio de Janeiro, onde se realizava um encontro internacional, a tortura de presos políticos no Brasil. E Moreira Alves, em 1968, quando era deputado federal, foi escolhido pelo regime militar como bode expiatório para a decretação do Ato Institucional nº 5. Também é significativo que o filme que acompanhava "O Velho e o Novo" tenha sido "Tempo de Guerra", de Jean-Luc Godard.
Na Imprensa Oficial - e também no cinema Pathé, que também programava -, o CEC participou ativamente da grande efervescência cultural que tomava conta do país, não obstante a ditadura. A discussão cultural era o álibi, o substitutivo para a falta de liberdade política e de democracia no Brasil. O CEC ainda foi um dos organizadores do 1º Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, realizado dois meses antes do AI-5; mas com o endurecimento do regime, a saída que restou aos cequianos foi procurar outras formas de resistência. A luz projetada pelo CEC só voltaria a tremer numa tela novamente em 1979, como resultado de um compromisso com o processo de abertura política.

Victor de Almeida é jornalista, produtor cinematográfico, cineasta, Diretor Executivo do Instituto Humberto Mauro e é sócio histórico do CEC

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Autran Dourado


A primeira vez que ouvi falar em Autran Dourado foi no CEC (Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais), de Belo Horizonte. Me diziam que frequentou o cine clube, em seus primórdios. Muitos anos mais tarde, ele e Lúcia, sua companheira de sempre, mãe de seus filhos, me confirmaram. Era grande amigo de Jacques do Prado Brandão. Não dava à luz nenhum texto que não tivesse sido lido, de antemão, pelo grande amigo.
Maurício Gomes Leite, já "decano", sob o meu ponto de vista então, me falava enfaticamente sobre "A Barca dos Homens", um exercício literário pesado, rigoroso, respeitoso com seus modelos paridos por William Faulkner ("As I Lay Dying", "Sound and Fury",  "Sanctuary"). Até que "fui" até Autran e mergulhei em todo o seu universo literário, fascinado. Li tudo, desde os romances e contos do princípio. E, certamente, elegi o meu predileto: "Ópera dos Mortos". A saga de Rosalina, guardiã do sobrado construído ao longo de gerações dos Honório Cotta, com seus relógios parados espalhados pela casa, me trazia à mente uma mise en scène Viscontiana numa eventual (e sonhada) adaptação para o cinema. Rosalina, com um criado excepcional, fiel e doentio, o incluia em seus delírios construídos pelo efeito do licor cotidiano e o excluia à luz do dia. O rigor na construção da narrativa, perpassando (indo e vindo) camadas do tempo, traduzidas na construção do sobrado de Duas Pontes (era a sua Yoknapatawpha?), não era produto de um automatismo da escrita e sim de um exercício de carpintaria (seu ensaio sobre a narratividade, sobre o método de construção de um texto, sobre a simetria buscada em mapas narrativos, em pólos de tensão dramática, num burilamento exaustivo das palavras, num requinte que lhe deu um lugar único na moderna literatura brasileira, tirado de uma série de palestras que deu, "Uma Poética do Romance, Matéria de Carpintaria", traduz seu estilo de trabalho).  
Vindo de gerações que haviam produzido Cyro dos Anjos, Guimarães Rosa, Mário Palmério, Cornélio Penna, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Emílio Moura, Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior e, mais próximos, geracionalmente, os "Quatro Cavaleiros do Apocalipse" (Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), contemporâneo de fenômenos da província mineira, como o grande jornalista Wilson Figueiredo, o Poeta Affonso Ávila (que o antecipou na morte, por alguns dias) e super influente sobre a turma da geração Complemento, pouco mais nova que ele (de onde saem Maurício Gomes Leite, Silviano Santiago, Argemiro Ferreira, Frederico Moraes, Ivan Ângelo entre muitos outros).
No dia que pedi à minha mulher que me aproximasse dele para falar sobre o projeto "Ópera dos Mortos", ele e Lúcia nos receberam maravilhosamente em sua casa na Rua Eduardo Guinle, em Botafogo, no Rio de Janeiro.
Minha mulher é Autran, de sua mãe, D. Lygia Autran. D. Lygia era uma mulher extraordinária. Só conheci o seu "mito", pois quando conheci Betty, a mãe dos meus filhos, ela tinha morrido, muito jovem, um ano antes. Muito amiga de seu primo, Paulo Autran e sua amiga inseparável, Tônia Carreiro, formavam um grupo de cumplicidade perfeito. Mas o nome Autran de Waldomiro (ou, como aprendi a lidar em uma intimidade doméstica, Waldo) não é, pelo menos proximamente, do mesmo tronco familiar. Waldomiro Autran Dourado é mineiro, de Patos de Minas, morou em Monte Santo e em São Sebastião do Paraíso, na fronteira com São Paulo, antes de se mudar para Belo Horizonte. Mas havia outras aproximações: dos seus parentes "Dourado", um veio a se casar com a Tia Maria, irmã de D. Lygia, o Fernando. O que fez com que D. Lygia se tornasse uma grande amiga de "Waldo". E Fernando Dourado de Gusmão, ligado ao Tribunal Regional do Trabalho, em Minas, se aproximou de Jacques do Prado Brandão, colega de trabalho.

Como disse Fernando Sabino: "Em Minas, tudo comunica."

Na noite que, humildemente, fui à reunião com Autran Dourado, tinha o dever de casa na ponta da língua: tinha lido tudo dele, até então. E bem.
Luiz Costa Lima, essa grande figura, formava um grupo de professores e alunos da PUC, colegas de Betty Autran e com quem convivemos muito fraternalmente, durante anos.
Minhas ousadia e pretensões eram grandes. No final dos anos 60, eu e Davi Neves, havíamos conspirado para fazer a adaptação de não menos que "Buriti", do Rosa. Apenas! Criamos, eu e Maurício Gomes Leite, uma carteira de financiamento à produção de filmes no BDMG, que estava sob a liderança do Hindemburgo Pereira Diniz (na ocasião, genro do governador, Israel Pinheiro). Quatro filmes foram contemplados com financiamento. Infelizmente não saiu a grana para rodarmos o "Buriti". Tínhamos um elenco formado (Jota Dângelo seria o Iô Liodoro, Suzana de Moraes, seria a Lalinha, Adriana Prieto, seria a Glorinha, Ivan Cândido - que teria de raspar a cabeça - seria o Nhô Gualberto Gaspar e Maria Bethânia, seria a Maria Behu). Mais tarde Carlos Prates Correia fez a sua leitura da novela de forma sensível e pessoal, "Noites do Sertão". Na ocasião, ficava conversando com Costa Lima sobre os dois projetos ("Buriti" e "Ópera dos Mortos"). Costa Lima tinha produzido textos sobre ambas as obras e me dava força para a realização dos projetos.
Quando expus para Autran Dourado a minha ambição senti que tinha havido um certo hiato, na conversa. Com muito cuidado, Autran foi me narrando que ele realmente via o romance como um filme (afinal de contas era um cinéfilo requintadíssimo), como uma possibilidade de leitura cinematográfica, mas achava ainda imatura a minha pretensão. Não conhecia meus filmes e não forcei nada. Obviamente fiquei decepcionado, mas entendi perfeitamente. Teria de comer mais feijão para "ousar" encarar essa missão. Mas ficamos amigos. Nunca assediei meus ídolos. Nunca forcei a presença em suas vidas (lembro-me de um episódio que aconteceu comigo, quando estava em Paris, por uns dias, e estava hospedado na casa de uma amiga, uma atriz, Cathérine Faux - que era "real" - namorada de um amigo comum, Lee Jaffe. Um dia Cathérine me convidou para ir à casa de uma grande amiga que estaria recebendo Jean Luc Godard para um vinho amigo. Tremi nas bases e dei uma desculpa: não fui. Uma ordem de raciocínios me faz travar na presença de pessoas que admiro. Se há tempo, um relacionamento poderá ocorrer: isso aconteceu em muitos outros momentos da minha vida).
Mas havia alguns episódios da crônica familiar que nos faziam cruzar os caminhos. Autran Dourado sempre me procurava e era muito atencioso, cordial e, me parecia, respeitoso. Ou vice versa.
Numa dessas ocasiões (o casamento de um primo de Betty) Autran Dourado se aproximou de mim, pelas costas e me chamou: "Veloso, acabo da lançar uma coletânea de novelas, 'Armas e Corações'. Gostaria que você escolhesse uma delas para transformar em um filme." Fiquei extasiado e comemorei com ele, na ocasião.
Naquele momento estava muito envolvido em um projeto que me ocupou energias e tempo. Estava tentando levantar a produção do último filme de Alberto Cavalcanti e não pude ir à luta pela adaptação da novela. Havia duas novelas, no livro, interessantíssimas: "Às Seis e Meia no Largo do Carmo" e "A Estranha Senhorita do País dos Sonhos". A primeira, recomendada por Jacques do Prado Brandão, era um duelo à bala, entre três personagens, em uma cidade típica do seu universo (dele, Autran) - Duas Pontes? Acho que sim. A segunda era um legítimo produto da mente que criou um universo mágico (como o universo da obra de Murilo Rubião, de Garcia Marquez). Fiquei entre os dois projetos (e, já viajando: porque não os dois?). Infelizmente o projeto de Cavalcanti não se realizou e me obrigou a um recuo profissional e pessoal que me levou de volta a morar em Minas, já com uma família formada. Mas busquei, ao longo de vários tempos, retomar a ideia dos filmes.
Um dia, em Belo Horizonte, recebo uma carta de Autran solicitando um favor em torno do projeto de filmagem de "Uma Vida em Segredo", buscando alguns conselhos de como funcionava o sistema de cessão de direitos para filmagem e etc. Havia o interesse de uma produtora (algo me diz que era a Assunção Hernandes - ele não me precisou, soube disso por outras vozes) em adquirir os direitos para filmagem (a direção já poderia ser de Suzana Amaral, que tinha feito, recentemente, "A Hora da Estrela"). Prontamente troquei com ele uma correspondência dando palpites. Ele ficou muito grato e confirmou a permissão para que pudesse utilizar o seu trabalho (não, ainda, "Ópera dos Mortos"...). Pouco depois fui supreendido por um especial da Globo, com a novela "Às Seis e Meia no Largo do Carmo", adaptada para a TV. Havia, inclusive, uma grande coincidência na escalação de "casting" (Ângelo Antônio, Letícia Sabatella, etc. - que eram imaginados por mim para os papéis principais - eu ainda acrescentava Milton Gonçalves, como o pistoleiro negro, de aluguel, contratado para executar o personagem central e que foi mal escolhido, no trabalho da TV, na minha opinião - não me lembro quem fez o personagem do pistoleiro).
A vida deu voltas e perdi o contato com Autran Dourado. Mas sempre o acompanhei pelo desenvolvimento de seu trabalho.
Um homem discreto, intelectual rigoroso, dono de um humor fino e inteligente e certamente um dos maiores representantes da literatura brasileira contemporânea. Um estilo único, pessoal e "suculento", prenhe de formação literária e humanista. Um autor raro, nos nossos dias. Um personagem extraordinário do tempo que minha geração teve como espelho. Foi um grande prazer conviver (pouco) com Autran Dourado.

Geraldo Veloso