Dois
tempos do CEC
Sócio: Victor
de Almeida
1. O
Centro de Estudos Cinematográficos foi fundado no início da década de 1950 em
Belo Horizonte. Então, a capital era uma cidade com muitas limitações culturais
- na acepção de seus críticos mais cáusticos, tratava-se de uma aldeia com
bonde. Para superar (e sobreviver ao) seu acanhamento cultural, as pessoas se
reuniam em grupos. Havia grupos para as diferentes expressões artísticas e
culturais, uns mais, outros menos organizados, que se reuniam em torno de seus
interesses particulares como forma de se auto-alimentarem de informações mais
atualizadas a respeito do que estava sendo feito no Brasil e no mundo.
O
CEC se notabilizou por reunir o grupo de pessoas que, embora participassem
eventualmente de outras iniciativas culturais, descobriam no cinema uma forma
mais completa de ver o mundo, pela capacidade dessa arte de absorver todas as
demais. Então, o cinema era o principal, senão único, lazer cultural praticado
pela maioria da população. Alguns cidadãos mais atentos observaram que, do meio
dos filmes programados semanalmente na cidade, havia obras que se destacavam
pela sua originalidade. O cinema era um produto industrial, feito para a
diversão das massas, mas também era uma forma de expressão artística. A crítica
de cinema, exercida primeiro pelos irmãos Santos Pereira, depois por Cyro
Siqueira, veio separar do volume de filmes produzidos pela indústria, sobretudo
a de Hollywood, aqueles que, a seu juízo, mereciam ser melhor considerados
pelos espectadores mais exigentes. Por isso, durante muito tempo, o exercício
crítico provocou uma discordância entre os críticos e os jornais que os
abrigavam e o público e os exibidores cinematográficos sobre as avaliações
feitas por essas duas partes a respeito da qualidade dos filmes.
O
CEC veio estabelecer um espaço próprio para aqueles filmes que não só a
crítica, mas os espectadores mais críticos, destacavam da produção industrial
norte-americana e das cinematografias lateriais, sobretudo européia. O
cineclube concedeu tela para esses filmes e reuniu um auditório interessado em
participar de estudos mais ou menos sistematizados a respeito dessas obras e de
seus autores, bem como das cinematografias nacionais e seus representantes que
mereciam atenção no quadro geral da produção cinematográfica mundial.
Durante
pelo menos duas décadas, nos anos 1950 e início dos anos 1960, o CEC foi essa
"janela para o mundo", atraindo pessoas com interesse específico no
cinema, mas também militantes de outros grupos culturais, como da literatura, das
artes plásticas, da música, do teatro, do jornalismo, da política etc. Para
isso contribuiu, sem dúvida, a localização do CEC, no meio de um corredor
formado, na Rua Curitiba, pelo cinema Art-Palácio (que exibia filmes italianos
e também alemães, japoneses, indianos, mais tarde da nouvelle-vague e Antonioni), os jornais "Folha de Minas"
e "Binômio", os centros de cultura italiana e portuguesa e, por fim,
a Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.
O
cineclube teve a capacidade de aglutinar elementos de quase todos os grupos -
com a exceção daqueles mais tradicionais -, incluídos os católicos, que também
viam no cinema um poderoso meio de influência, mas que se sentiam pouco à
vontade entre intelectuais sensíveis ao existencialismo e ao marxismo; por
isso, procuravam desenvolver seus próprios espaços de exibição e discussão.
A
circunstância histórica de promover num ambiente acanhado um meio de expressão
em ascensão no mundo atraiu ao CEC sucessivas gerações de jovens,
principalmente, interessados em se incorporar a um acontecimento sem similar na
cidade e que lhes permitia descortinar horizontes muito mais amplos. Além do
cinema, o CEC promoveu, nas relações sociais que se estabeleceram entre seus
participantes, o contato de muitos de seus associados com o que havia de mais
atual no mundo na área da literatura, do teatro, das artes plásticas, da
música, da política etc. Muitos frequentavam o CEC para se arejar
intelectualmente por meio do cinema, mas muitos outros tiveram a sorte de dar
nele o primeiro passo para se profissionalizarem na literatura, no jornalismo e
no próprio cinema.
O
cineclube foi, indubitavelmente, um importante espaço de sociabilidade e
conhecimento não só da arte cinematográfica, mas de tudo o que de mais avançado
pudesse interessar a "intelligentzia" local. Ele foi um agente
poderoso de transformação de muitas pessoas, libertando-as do ambiente limitado
de uma Belo Horizonte provinciana para lhes apresentar outras realidades mais
complexas e ricas. Só isso basta para definir a importância do CEC e a
influência que teve, social e culturalmente, na formação de várias gerações de
mineiros.
2. Outro momento importante na vida do CEC foi
quando o cineclube, depois de quase desaparecer, em consequência dos acontecimentos
decorrentes do golpe de 1964 (muitos cequianos
passaram meses na prisão), ressurgiu em 1965, realizando suas sessões
cinematográficas dos sábados à noite no cinema da Imprensa Oficial. Corria
então o governo Israel Pinheiro, que tinha sido eleito a contragosto do regime
militar, e o CEC, dirigido por uma nova geração de cinéfilos, aproveitava a
réstia de luz que ainda havia do regime abatido pelo golpe para manter viva a
discussão cultural.
Com
os filmes que circulavam no país, brasileiros e estrangeiros, não obstante a
censura, o CEC se transformou então num vigoroso fórum de discussões com o qual
confrontava o obscurantismo ascendente. Não obstante os percalços, isso durou
até 1968, tendo sido realçado, numa entrevista, pela presidente Dilma Rousseff,
quando candidata, como tendo sido essencial à sua formação. Moradora em Belo
Horizonte, aluna do Colégio Estadual Central, a presidente era uma das
frequentadoras das sessões da Imprensa Oficial, onde teve a oportunidade de
assistir a "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e
"Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, e também a filmes de Jean-Luc
Godard e François Truffaut. Acertadamente, a presidente salienta que essa
paixão pelo cinema tinha um sentido subversivo, como eram considerados então
pelo regime todos os atos que de alguma forma não se submetiam à repressão e à
censura à cultura.
Significativa
desse período foi a exibição, na Imprensa Oficial, em 27 de maio de 1967, de um
filme curto do cequiano Maurício
Gomes Leite. Então trabalhando no Rio de Janeiro como jornalista. Ironicamente
intitulado "O Velho e o Novo", o filme era uma homenagem ao crítico
literário austríaco, naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux, que combatia
a ditadura nas páginas do "Correio da Manhã" e que veio assistir à
apresentação, junto com os escritores Antonio Callado e Carlos Heitor Cony e o
jornalista Márcio Moreira Alves. Callado, Cony e Moreira Alves tinham sido
presos, em 1965, junto com outros intelectuais brasileiros, quando denunciavam,
em frente ao hotel Glória, no Rio de Janeiro, onde se realizava um encontro
internacional, a tortura de presos políticos no Brasil. E Moreira Alves, em
1968, quando era deputado federal, foi escolhido pelo regime militar como bode
expiatório para a decretação do Ato Institucional nº 5. Também é significativo
que o filme que acompanhava "O Velho e o Novo" tenha sido "Tempo
de Guerra", de Jean-Luc Godard.
Na
Imprensa Oficial - e também no cinema Pathé, que também programava -, o CEC
participou ativamente da grande efervescência cultural que tomava conta do
país, não obstante a ditadura. A discussão cultural era o álibi, o substitutivo
para a falta de liberdade política e de democracia no Brasil. O CEC ainda foi
um dos organizadores do 1º Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte,
realizado dois meses antes do AI-5; mas com o endurecimento do regime, a saída
que restou aos cequianos foi procurar
outras formas de resistência. A luz projetada pelo CEC só voltaria a tremer
numa tela novamente em 1979, como resultado de um compromisso com o processo de
abertura política.
Victor
de Almeida é jornalista, produtor cinematográfico, cineasta, Diretor Executivo
do Instituto Humberto Mauro e é sócio histórico do CEC
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