quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Autran Dourado


A primeira vez que ouvi falar em Autran Dourado foi no CEC (Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais), de Belo Horizonte. Me diziam que frequentou o cine clube, em seus primórdios. Muitos anos mais tarde, ele e Lúcia, sua companheira de sempre, mãe de seus filhos, me confirmaram. Era grande amigo de Jacques do Prado Brandão. Não dava à luz nenhum texto que não tivesse sido lido, de antemão, pelo grande amigo.
Maurício Gomes Leite, já "decano", sob o meu ponto de vista então, me falava enfaticamente sobre "A Barca dos Homens", um exercício literário pesado, rigoroso, respeitoso com seus modelos paridos por William Faulkner ("As I Lay Dying", "Sound and Fury",  "Sanctuary"). Até que "fui" até Autran e mergulhei em todo o seu universo literário, fascinado. Li tudo, desde os romances e contos do princípio. E, certamente, elegi o meu predileto: "Ópera dos Mortos". A saga de Rosalina, guardiã do sobrado construído ao longo de gerações dos Honório Cotta, com seus relógios parados espalhados pela casa, me trazia à mente uma mise en scène Viscontiana numa eventual (e sonhada) adaptação para o cinema. Rosalina, com um criado excepcional, fiel e doentio, o incluia em seus delírios construídos pelo efeito do licor cotidiano e o excluia à luz do dia. O rigor na construção da narrativa, perpassando (indo e vindo) camadas do tempo, traduzidas na construção do sobrado de Duas Pontes (era a sua Yoknapatawpha?), não era produto de um automatismo da escrita e sim de um exercício de carpintaria (seu ensaio sobre a narratividade, sobre o método de construção de um texto, sobre a simetria buscada em mapas narrativos, em pólos de tensão dramática, num burilamento exaustivo das palavras, num requinte que lhe deu um lugar único na moderna literatura brasileira, tirado de uma série de palestras que deu, "Uma Poética do Romance, Matéria de Carpintaria", traduz seu estilo de trabalho).  
Vindo de gerações que haviam produzido Cyro dos Anjos, Guimarães Rosa, Mário Palmério, Cornélio Penna, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Emílio Moura, Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior e, mais próximos, geracionalmente, os "Quatro Cavaleiros do Apocalipse" (Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), contemporâneo de fenômenos da província mineira, como o grande jornalista Wilson Figueiredo, o Poeta Affonso Ávila (que o antecipou na morte, por alguns dias) e super influente sobre a turma da geração Complemento, pouco mais nova que ele (de onde saem Maurício Gomes Leite, Silviano Santiago, Argemiro Ferreira, Frederico Moraes, Ivan Ângelo entre muitos outros).
No dia que pedi à minha mulher que me aproximasse dele para falar sobre o projeto "Ópera dos Mortos", ele e Lúcia nos receberam maravilhosamente em sua casa na Rua Eduardo Guinle, em Botafogo, no Rio de Janeiro.
Minha mulher é Autran, de sua mãe, D. Lygia Autran. D. Lygia era uma mulher extraordinária. Só conheci o seu "mito", pois quando conheci Betty, a mãe dos meus filhos, ela tinha morrido, muito jovem, um ano antes. Muito amiga de seu primo, Paulo Autran e sua amiga inseparável, Tônia Carreiro, formavam um grupo de cumplicidade perfeito. Mas o nome Autran de Waldomiro (ou, como aprendi a lidar em uma intimidade doméstica, Waldo) não é, pelo menos proximamente, do mesmo tronco familiar. Waldomiro Autran Dourado é mineiro, de Patos de Minas, morou em Monte Santo e em São Sebastião do Paraíso, na fronteira com São Paulo, antes de se mudar para Belo Horizonte. Mas havia outras aproximações: dos seus parentes "Dourado", um veio a se casar com a Tia Maria, irmã de D. Lygia, o Fernando. O que fez com que D. Lygia se tornasse uma grande amiga de "Waldo". E Fernando Dourado de Gusmão, ligado ao Tribunal Regional do Trabalho, em Minas, se aproximou de Jacques do Prado Brandão, colega de trabalho.

Como disse Fernando Sabino: "Em Minas, tudo comunica."

Na noite que, humildemente, fui à reunião com Autran Dourado, tinha o dever de casa na ponta da língua: tinha lido tudo dele, até então. E bem.
Luiz Costa Lima, essa grande figura, formava um grupo de professores e alunos da PUC, colegas de Betty Autran e com quem convivemos muito fraternalmente, durante anos.
Minhas ousadia e pretensões eram grandes. No final dos anos 60, eu e Davi Neves, havíamos conspirado para fazer a adaptação de não menos que "Buriti", do Rosa. Apenas! Criamos, eu e Maurício Gomes Leite, uma carteira de financiamento à produção de filmes no BDMG, que estava sob a liderança do Hindemburgo Pereira Diniz (na ocasião, genro do governador, Israel Pinheiro). Quatro filmes foram contemplados com financiamento. Infelizmente não saiu a grana para rodarmos o "Buriti". Tínhamos um elenco formado (Jota Dângelo seria o Iô Liodoro, Suzana de Moraes, seria a Lalinha, Adriana Prieto, seria a Glorinha, Ivan Cândido - que teria de raspar a cabeça - seria o Nhô Gualberto Gaspar e Maria Bethânia, seria a Maria Behu). Mais tarde Carlos Prates Correia fez a sua leitura da novela de forma sensível e pessoal, "Noites do Sertão". Na ocasião, ficava conversando com Costa Lima sobre os dois projetos ("Buriti" e "Ópera dos Mortos"). Costa Lima tinha produzido textos sobre ambas as obras e me dava força para a realização dos projetos.
Quando expus para Autran Dourado a minha ambição senti que tinha havido um certo hiato, na conversa. Com muito cuidado, Autran foi me narrando que ele realmente via o romance como um filme (afinal de contas era um cinéfilo requintadíssimo), como uma possibilidade de leitura cinematográfica, mas achava ainda imatura a minha pretensão. Não conhecia meus filmes e não forcei nada. Obviamente fiquei decepcionado, mas entendi perfeitamente. Teria de comer mais feijão para "ousar" encarar essa missão. Mas ficamos amigos. Nunca assediei meus ídolos. Nunca forcei a presença em suas vidas (lembro-me de um episódio que aconteceu comigo, quando estava em Paris, por uns dias, e estava hospedado na casa de uma amiga, uma atriz, Cathérine Faux - que era "real" - namorada de um amigo comum, Lee Jaffe. Um dia Cathérine me convidou para ir à casa de uma grande amiga que estaria recebendo Jean Luc Godard para um vinho amigo. Tremi nas bases e dei uma desculpa: não fui. Uma ordem de raciocínios me faz travar na presença de pessoas que admiro. Se há tempo, um relacionamento poderá ocorrer: isso aconteceu em muitos outros momentos da minha vida).
Mas havia alguns episódios da crônica familiar que nos faziam cruzar os caminhos. Autran Dourado sempre me procurava e era muito atencioso, cordial e, me parecia, respeitoso. Ou vice versa.
Numa dessas ocasiões (o casamento de um primo de Betty) Autran Dourado se aproximou de mim, pelas costas e me chamou: "Veloso, acabo da lançar uma coletânea de novelas, 'Armas e Corações'. Gostaria que você escolhesse uma delas para transformar em um filme." Fiquei extasiado e comemorei com ele, na ocasião.
Naquele momento estava muito envolvido em um projeto que me ocupou energias e tempo. Estava tentando levantar a produção do último filme de Alberto Cavalcanti e não pude ir à luta pela adaptação da novela. Havia duas novelas, no livro, interessantíssimas: "Às Seis e Meia no Largo do Carmo" e "A Estranha Senhorita do País dos Sonhos". A primeira, recomendada por Jacques do Prado Brandão, era um duelo à bala, entre três personagens, em uma cidade típica do seu universo (dele, Autran) - Duas Pontes? Acho que sim. A segunda era um legítimo produto da mente que criou um universo mágico (como o universo da obra de Murilo Rubião, de Garcia Marquez). Fiquei entre os dois projetos (e, já viajando: porque não os dois?). Infelizmente o projeto de Cavalcanti não se realizou e me obrigou a um recuo profissional e pessoal que me levou de volta a morar em Minas, já com uma família formada. Mas busquei, ao longo de vários tempos, retomar a ideia dos filmes.
Um dia, em Belo Horizonte, recebo uma carta de Autran solicitando um favor em torno do projeto de filmagem de "Uma Vida em Segredo", buscando alguns conselhos de como funcionava o sistema de cessão de direitos para filmagem e etc. Havia o interesse de uma produtora (algo me diz que era a Assunção Hernandes - ele não me precisou, soube disso por outras vozes) em adquirir os direitos para filmagem (a direção já poderia ser de Suzana Amaral, que tinha feito, recentemente, "A Hora da Estrela"). Prontamente troquei com ele uma correspondência dando palpites. Ele ficou muito grato e confirmou a permissão para que pudesse utilizar o seu trabalho (não, ainda, "Ópera dos Mortos"...). Pouco depois fui supreendido por um especial da Globo, com a novela "Às Seis e Meia no Largo do Carmo", adaptada para a TV. Havia, inclusive, uma grande coincidência na escalação de "casting" (Ângelo Antônio, Letícia Sabatella, etc. - que eram imaginados por mim para os papéis principais - eu ainda acrescentava Milton Gonçalves, como o pistoleiro negro, de aluguel, contratado para executar o personagem central e que foi mal escolhido, no trabalho da TV, na minha opinião - não me lembro quem fez o personagem do pistoleiro).
A vida deu voltas e perdi o contato com Autran Dourado. Mas sempre o acompanhei pelo desenvolvimento de seu trabalho.
Um homem discreto, intelectual rigoroso, dono de um humor fino e inteligente e certamente um dos maiores representantes da literatura brasileira contemporânea. Um estilo único, pessoal e "suculento", prenhe de formação literária e humanista. Um autor raro, nos nossos dias. Um personagem extraordinário do tempo que minha geração teve como espelho. Foi um grande prazer conviver (pouco) com Autran Dourado.

Geraldo Veloso

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