terça-feira, 6 de novembro de 2012

CEC 60 ANOS - ENQUETE

Sócio: Oswaldo Caldeira


1. O que é o CEC?

O CEC para mim está associado às grandes descobertas da juventude. Adolescente ainda, eu já lia, pensava, preocupava-me politicamente, estava em andamento minha formação como intelectual - queria até mesmo ser um escritor, um artista, mas, era todo um universo associado à palavra. (Olhando agora, retrospectivamente, retroativamente, eu acrescentaria – era um universo associado à individualidade, à solidão). Curiosamente, o cinema – que eu adorava – era certamente o maior de todos os entretenimentos – mas, apesar de suscitar discussões, etc., não fazia parte do núcleo mais sofisticado e nobre daquele universo intelectual, ocupado pela filosofia, literatura, etc. E, de repente, através da aproximação com gente do CEC, descubro que imagens podem gerar reflexões que vão além da paixão por Marilyn Monroe ou Ava Gardner, além da felicidade prometida pelos musicais da Metro, ou mesmo dos filmes realistas proibidos e sem happy end dos franceses e italianos. Na verdade, se eu fosse resumir a grande descoberta do CEC numa palavra, eu diria: o diretor – uma autoria. O CEC me revelou que para além das marquises com os nomes das estrelas e do delicioso escapismo de quando se apagavam as luzes do cine Metrópole, havia uma figura oculta e insuspeitada que orquestrava toda aquela magia. O CEC é o momento da descoberta do cinema como autoria e como linguagem, que imagens se organizam numa construção como narrativa, como reflexão filosófica, e – sobretudo – espantoso! - como um estilo pessoal traduzido numa combinação articulada entre sons e imagens, numa visão do mundo - como arte. Trocando em miúdos: é fácil a gente entender que escritores tenham estilo e se diferenciem e sejam identificados através de palavras. Mas, com imagens?! Como isto é possível?!. Então, a partir do CEC, transfigura-se a minha visão do cinema. Descortina-se um novo mundo. Num segundo momento e como consequência natural, a coisa se amplia mais ainda, inicio-me no desvendamento e na dissecação de como enxergar, identificar e manipular esses elementos narrativos. Dá-se uma dissecação, uma consciência crítica dos elementos narrativos. Não só isso, como o desvendamento da mágica, de como a coisa era feita e obtida e uma coisa mais sutil a identificação da autoria. O cinema não apenas como entretenimento, mas como instrumento de pensar e comunicar - como as outras artes - influenciar e transformar.


2. O CEC que você viveu.

O primeiro momento

Um belo dia fui levado a uma sessão de cinema naquela salinha em cima do Art Palácio, na Rua Curitiba, no centro de Belo Horizonte. Cadeiras desconfortáveis de madeira, projetor barulhento, às vezes o filme arrebentava, tinha de colar, às vezes já vinha faltando pedaços, tela com pouca luminosidade e nitidez. Mas todas essas deficiências me passaram desapercebidas. Eu só tinha olhos para aquela gente que falava uma outra língua, que sabia nomes de diretores de cor e falava de estilo, autoria, discutia filosofia, o ponto de vista, a visão do mundo de cada cineasta -  aquele encontro com a intimidade, com os segredos ocultos do cinema. Podia-se conviver ali com as pessoas que escreviam nos jornais, que entendiam os filmes em profundidade, que sabiam os segredos do cinema.  Os iniciados. Estava basicamente associado à crítica: você lia as críticas nos jornais e, de repente, você se encontrava com os críticos, aquelas celebridades em carne e osso, nas sessões dos CEC, o que se estendia aos bares quando tinha o privilégio de discutir os filmes com eles ou, pelo menos, ouvi-los falar, discorrer a respeito com pessoas do mesmo nível. Não que eu ousasse me dirigir a eles, mas podia me sentar por perto e ficar ouvindo ao longo da noite. O CEC também tinha palestras, o programa mimeografado, tinha cursos e publicações - como a famosa e lendária Revista de Cinema e, depois, Claquete etc. Ali estavam os caras que eram iniciados, que sabiam das coisas, dos códigos jamais sonhados sequer pelos pobres mortais.

O segundo momento

Depois, entrei num concurso da rádio Itatiaia, que consistia em escrever uma crítica sobre o filme que você mais tivesse gostado em sua vida e eu escrevi sobre o “Broto Para o Verão” – “Une Fille Pour l`été” - de Édouard Molinaro, com Pascale Petit e ganhei (o prêmio foi um dicionário) e tive a crítica publicada em Claquete e a suprema honra de Mauricio Gomes Leite me dizer que uma frase minha afirmando que a personagem de Pascale Petit  não olhava diretamente nos olhos como a Ivitch de Sartre nos Caminhos da Liberdade  era a frase de um verdadeiro intelectual sofisticado e eu quase morri de emoção, um momento de glória.

O terceiro momento

Depois, fui gerente do CEC. Era um nome pomposo para ser o único funcionário do cine clube. Fora a faxina eu fazia tudo. Eu chegava colocava algum disco de trilhas sonoras de filmes no toca discos e passava as tardes naquele sobrado em cima do Art Palácio recebendo os sócios, cobrando e recolhendo mensalidades, escrevendo cartas, recebendo a correspondência, jornais, revistas etc., recortando, colando e classificando críticas e artigos sobre cinema e guardando nos arquivos. Eu só não fazia o serviço de buscar e devolver as latas de filmes, uma coisa trabalhosa porque eles eram alugados, às vezes vinham de outros centros e havia prazos de devolução. 

O quarto momento

Paulo Leite Soares me levou para o recem fundado Correio de Minas e logo em seguida o Victor Hugo de Almeida me levou para o Diário da Tarde e eu ingressei no mundo maravilhoso da crítica - ver meu nome e minhas ideias impressos nos jornais.  No CEC, eu esperava ansioso o final da tarde, a hora em que os meninos do “Pequeno Jornaleiro” passavam gritando “Diááááário da taaaaar-de!” e eu pendurava a plaquinha de “volto já” e descia as escadas correndo para comprar o jornal e ler o que eu havia escrito, recortar, colar e guardar no arquivo minha própria crítica.

O quinto momento

Ainda que tenha sido uma indicação do CPC da UNE posso atribuir ao CEC também a minha indicação para o curso Sucksdorf no Rio de Janeiro, já que fui indicado por Moisés Kendler e Vitor Hugo de Almeida, estreitamente ligados ao CEC, e minha passagem por ali. Ou seja, meu trampolim para a realização cinematográfica.  


4. Qual era a importância do CEC o que ele significava?

Na medida em que você se torna um iniciado, você precisa ver os filmes, encontrar o fio da meada para entender a obra de um diretor, saber identificá-lo, sua evolução, como a coisa toda foi tecida, engendrada. Não basta ver “Rocco e seus irmãos” e achar uma obra prima. Outros mais sábios vão te explicar como Visconti chegou ali, todo um encaminhamento que vem de Senso, Ossessione e outras raridades que soam como palavras mágicas de um abre-te Sésamo inalcançável.  Você precisa visceralmente ver os filmes de Visconti e compará-lo e diferenciá-lo de seus colegas italianos. Você precisa conhecer os filmes de Jean Vigo, filmes nunca vistos, raridades só acessíveis para quem foi ao IDHEC em Paris, filmes que os privilegiados chegam contando de outros países. “Paulo Emilio Salles Gomes um dos maiores críticos do Brasil talvez do mundo escreveu um livro sobre Jean Vigo em francês! Meu Deus como conseguir o livro e como entendê-lo e como ver os filmes desse cara??!!!” E não basta isso. Depois, você quer ver os filmes dos contemporâneos daquele diretor, entender porque ele é melhor ou pior, os filmes do neo Realismo, os livros em que foram baseados seus filmes, a literatura a respeito, é toda uma análise daqueles movimentos artísticos, é todo um conjunto que vai permitir um entendimento profundo do cinema. Isso sem falar nas discussões intermináveis entre os mestres discordando sobre qual desses filmes era realmente o melhor. Quem vai resolver esses problemas para você? O cine clube. É o cine clube que vai permitir tudo isso ou te encaminhar nesse sentido. Era uma coisa muito importante. Porque é um mundo, um universo complexo a ser desvendado. Então, no primeiro momento, o CEC tinha esse papel, de nos trazer estes filmes, rever estes filmes, dar a você a possibilidade de ver filmes que não estão mais no mercado, o acesso as estas preciosidades. E, claro, todo um arquivo, biblioteca especializada em cinema e revistas estrangeiras como os Cahiers du Cinéma e Positif e Sight and Sound e Bianco e Nero, etc etc a respeito e as críticas dos jornais arquivadas e palestras e cursos e conversas com  os associados mais ilustrados. Falando em mercado, aliás, a dificuldade começava pelo fato de que os filmes custavam a chegar a BH, frequentemente nem iam! Eu me lembro de chegar no Rio em 62 e me deslocar para longínquos subúrbios para ver  filmes como “Johnny Guitar” de Nicholas Ray. No CEC, por exemplo, tive o privilégio de assistir num dia de manhã (aí foi no Art Palácio, sessão especial comemorativa), o “Acossado” de Godard, mais do que cinema, um filme que mudou nossas vidas. E, claro, até aqui ainda estamos falando no cinema como plateia critica, como cinéfilos, mais adiante iríamos falar do cinema enquanto realização, enquanto produção.


5. Na tua visão, o que mudou na cinefilia, de sessenta anos para cá?

Muita coisa mudou. Tanta coisa que não vou ter a pretensão de abranger todo este percurso toda essa evolução, apenas vou destacando alguns pontos que me ocorrem mesmo em grandes saltos e correndo o risco de omissões importantes. Começando logo de trás para a frente, em primeiro lugar, a grande revolução foi o vídeo cassette - você poder pegar um filme e levar para casa, ver comodamente sentado na sua sala, na sua cama e rever quantas vezes quiser - indo para frente e para trás, repetindo os trechos quantas vezes quiser. Para analisar um filme, decupar uma sequência, é uma revolução monumental. E trazer preciosidades de todas as partes do mundo, filmes considerados jóias raras perdidas, às vezes apenas com uma única cópia em risco de extinção há décadas trancada a sete chaves, como uma verdadeira relíquia, no cofre forte de alguma cinemateca e, de repente, são geradas a partir dela, milhares de cópias que se espalham pelo mundo afora. Hoje temos mais o DVD, o computador, a televisão em alta tecnologia, emitindo para todo o mundo. Com o DVD, você reúne toda a obra de Orson Welles numa prateleira. Coloca os grandes clássicos da história do cinema numa parede da sua casa (descendo para o prosaico, quem já carregou uma lata de filme 35mm sabe o que isso significa...rs). Numa qualidade cada vez mais primorosa de som e imagem. Antes de chegarmos a isso, já havia ocorrido uma grande revolução com os cinemas de arte, que trouxeram as preciosidades das prateleiras das cinematecas para casas tradicionais de espetáculo com todo o conforto, projeção em 35 mm etc. Vale registrar que a cinefilia teve momentos históricos como, por exemplo, a resistência à ditadura militar, através da federação de cineclubes que exibia filmes considerados subversivos por todo o Brasil, promovendo debates em sindicatos, fábricas, etc. Foi o caso do meu Passe Livre, que deu a partida na criação de um mercado paralelo alternativo ao mercado tradicional, constituído basicamente por cine clubes. Então, toda a concepção de cinefilia mudou. Não sou propriamente uma autoridade no assunto mas, pelo que vejo, hoje a cinefilia tem muito mais o intuito de formação de platéias, de encontros, de promover certas tendênciais, de tentar rompes as barreiras  dos grandes block buster que passaram a ocupar todo o mercado. Porque, hoje em dia, um filme médio mesmo norte americano, já não chega mais aos cinemas, e muito menos o filme europeu – esse então nem se fala! - então a cinefilia pode ser entendida também como uma forma de resistência, aquela que ocupa os cinemas de arte, as cinematecas, salas especiais, etc . Chegam a subúrbios distantes formam grupos, oficinas e mais - já começam a formar os primeiros cineastas em comunidades tradicionalmente marginalizadas como favelas, etc.


6. O que era o cinema quando o CEC surgiu? O que é o cinema hoje?

Eu não diria quando o CEC surgiu mas quando o CEC surgiu na minha vida. Em primeiro lugar, não existia televisão ou era incipiente, então o cinema tinha uma importância enorme. Era cercado por uma mitologia, uma magia muito grande o star system, as grandes estrelas, Hollywood, etc. As cinematografias de todo o mundo - mesmo com todas as limitações da província - chegavam a BH – filmes ingleses, italianos, alemães, franceses, mexicanos, etc -  até os cinejornais eram diferentes, via-se jornais americanos, jornais franceses , cinemas como o  Candelária, o Arte Avenida, o Art Palácio eram especializados em filmes que não eram americanos.  Os gêneros eram diferentes: o musical, filmes bíblicos, etc. Então havia uma grande variedade embora com uma predominância grande de Hollywood. Mas Cineccità era uma potência, franceses e ingleses tinham uma indústria, etc. Ir ao cinema era um programa muito importante para toda a família, as matinês, os seriados, os desenhos animados, Carlitos, Gordo e o Magro, Tom e Jerry e assim por diante. Projetava-se filmes nos aniversários infantis.

Acho que, para resumir uma longuíssima história, para esta época dourada, o maior abalo foi a televisão e, assim mesmo ainda se via cinema na televisão etc e foram ocorrendo diversas mudanças que não cabem ser examinadas aqui. Hoje em dia as salas de cinema são ocupadas pelos block busters pela boçalidade, etc a cinefilia está no dvd, na tv cultural, em alguns canais de Tv pagos, nos computadores, no celular e por aí vai. Como disse acima.


7. Quais foram os pontos doutrinários, teóricos e estéticos que você destaca, na trajetória do CEC? Quais os que mais exerceram sobre você, alguma influência (ou fascinação)?


Em primeiro lugar e, acima de tudo, uma coisa muito básica: essa dicotomia colocando de um lado um cinema do diretor, o cinema artístico e, do outro lado, em contraposição, o cinema do produtor, visando o lucro, o comércio. Talvez, os primeiros filmes que vi no CEC foram “Brinquedo Proibido” de Clément e “Cidade Nua” de Jules Dassin e filmes de René Clair; mas, logo em seguida, estávamos rejeitando os quatro C (Clair, Clément, Clouzot e Carné) e nos voltando para a toda a iconoclastia da nouvelle vague de Godard. Depois, a noção de autor foi ainda mais aprofundada pelos cahiers, a politique des auteurs, a camera stylo, a camera na mão, de Raoul Coutard, o rompimento com a luz equilibrada do estúdio tradicional e saída para os espaços exteriores; o cinema de improviso, o rompimento com o roteiro de ferro de Hollywood - instrumento do produtor – e nos encantávamos o balé dos travellings intermináveis de Antonioni ( “o travelling é uma questão de moral” – André Bazin) Hiroxima etc.  Eu já nasci nessa coisa da nouvelle vague, do cinema novo, etc., de Maurício Gomes Leite. O cinema brasileiro estava encarnado, então, sobretudo nos filmes de Nelson Pereira dos Santos e não pelo “Pagador de Promessas”; estávamos apegados a Antonioni mais do que a Fellini; e mais a Misoguchi do que a Kurosawa. Rejeitávamos enfaticamente o cinema politizado de tese, por exemplo, de um Cayatte ou do realismo socialista. O cinema não era uma coisa restrita à tela - estava surgindo uma nova mulher, novas formas de amar. Acho que estávamos mais próximos de uma esquerda anárquica, camusiana, sartreana, existencialista.


8. O que você levou, da tua vivência no CEC, para as atividades profissionais que você exerceu ou exerce?

Levei essa filosofia básica; na verdade, dentro daquele conjunto de coisas levei a concepção do cinema como arte, como autoria, como elemento de modificação do mundo - não da revolução ou tomada do poder ou algo assim, mas pela melhoria dos seres humanos. Uma concepção do cinema de esquerda, mas num sentido amplo que engloba um Ford, Hawks, Capra, Bergman, Godard, Max Ophuls, Welles e assim por diante. Fui muito marcado pela nouvelle vague e, sobretudo pelas ideias de Maurício Gomes Leite, etc.


9. Cite alguns personagens com os quais conviveu na tua vivência do CEC.


Quando penso em CEC, os primeiros nomes que me vêem à cabeça são Ronaldo Brandão, Antonio Lima (talvez por ser o presidente quando eu fui gerente) Victor Hugo de Almeida (que me levou para o Diário da Tarde), Paulo Leite Soares (que me levou para o Correio de Minas), José Haroldo Pereira (pela paixão e energia incontroláveis e suas críticas de Acossado e Hiroxima que assistiu centenas de vezes); e Maurício Gomes Leite, para mim o maior crítico de cinema de todos.  


10. O CEC foi criado sob a inspiração do exercício crítico; a construção de um cinema brasileiro a partir da formação no CEC "traiu" a sua vocação primeira?


Não. Acho que os cineastas que passaram pelo CEC, com toda a sua diversidade, têm em comum, exatamente uma postura que encara o cinema como arte, como expressão autoral, como irreverência – manifesta em suas múltiplas formas – um cinema não conformista, não voltado para o lucro e sim para uma visão crítica da sociedade. Mesmo no caso de alguns de nós que alcançaram êxito na bilheteria, isto não foi alcançado de uma forma que renunciasse aos princípios básicos. 


11. Examinando o apanhado de títulos e diretores brasileiros que passaram pelo CEC, ou se aproximaram de diversas formas com ele (CEC), como você vê a possibilidade de existência de um "cinema do CEC"? Existe isto? Ou a constatação é óbvia: a diversidade da produção indicada traduz a multiplicidade de influências que pairavam e cruzavam o CEC, enquanto espaço de vivência do cinema?

A segunda hipótese é a correta.


12. Você acredita numa "mística do CEC"?

Não

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

CEC 60 ANOS - ENQUETE

Sócio: Ronaldo de Noronha

1. O que é o CEC?
 
O CEC foi e é uma entidade cara a de muitos de nós, que recusamos a morte do cine clubismo feito com desprendimento e entusiasmo. É a nossa herança pessoal e cultural, preciosidade imaterial que levamos para toda parte onde vamos. Um espaço de luta contra os obstáculos e os desestímulos impostos pelos mundos da Política e do Dinheiro.
Sabemos que esta recusa, para continuar a ser efetiva e continuar a dar frutos, depende da paixão e do trabalho de amantes do cinema e da liberdade que teimam em lutar pelas boas causas cinematográficas.

2. Fale do CEC que você viveu.
 
O CEC, nos anos 60, e também depois, no fim dos 70 e começo dos 80 (tempos em que estive pessoalmente engajado em fazê-lo viver), era um lugar para encontrar pessoas que se gostavam e amavam o cinema, o riso e a boa conversa. Um lugar de sociabilidade, ancorado em entendimentos compartilhados sobre o poder e a fascinação dos filmes, pela capacidade deles de gerarem novas ideias, sensibilidades e conhecimentos. Um lugar para permitir e favorecer ações coletivas visando revoluções nas formas de viver, utopias que, mesmo não ocorrendo como queríamos, nunca deixaram de nos inspirar.

3. O que era o cinema quando o CEC surgiu? O que é o cinema hoje?

O cinema pelo qual lutou o CEC, nos anos 1950 e 60, era um ser vivo, mas sufocado, que escavava o chão da mesmice e da opressão política e econômica e se abria para uma coisa que, dentro dele, ao mesmo tempo que vinda do mundo lá fora, clamava pelo direito de ser livre e verdadeiro: um ser que, ao desabrochar sob os nomes de neo-realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo, mostrou que o cinema podia ser um instrumento de pensamento e de emancipação pessoal e política.
Hoje, nos anos 2010, o cinema continua a sofrer as mesmas necessidades de liberdade e invenção, mas de outras maneiras, enfrentando as mesmas/outras formas de escravidão. O sistema opressivo, estandardizado, monopolista dos estúdios da era de ouro de Hollywood ainda impera, é tão forte quanto nos idos de Bazin, Jacques e Cyro, embora muito maior, isto é, literalmente mundializado. Os Rosselinis, os Welles, os Eisensteins de outrora agora se chamam Kiarostami, Kar-Wai, Malick, Lynch, Coutinho. Unindo essas gerações, distantes no tempo, mas não na inspiração e no amor à arte do cinema, como ponte e passagem, Godard ainda persiste.
Nós, cequianos, com nossa teimosia e vontade quixotescas, persistimos também.

4. Na tua visão, o que mudou na cinefilia, de sessenta anos para cá? 

Antes, a cinefilia era mais rara e, por isso mesmo, mais preciosa e cultivada, dadas as dificuldades de ver bons filmes com frequência, inerentes ao sistema de distribuição e exibição da época (pré-TV, pré-DVD, pré Internet). Hoje, ver filmes novos ou antigos é mais fácil e, portanto, mais banal; mas, por isso mesmo, é uma atividade mais bem informada e amparada pela documentação, escrita e audiovisual.
Mas, mutadismutandi, a cinefilia é ainda o mesmo amor de sempre pelo cinema enquanto revelador do que somos e do que não somos, do mundo enquanto realidade e configuração de possibilidades.

5. Quais foram os pontos doutrinários, teóricos e estéticos que você destaca, na trajetória do CEC? Quais os que mais  exerceram, sobre você, alguma influência (ou fascinação)?
 
Citando sem ordem genética ou de importância:
o cinema enquanto fantasia e sonho;
o cinema como documento do real;
o cinema enquanto expressão pessoal de autores;
o cinema como invenção do futuro;
o cinema enquanto descoberta de diferenças.
Todos esses aspectos do cinema me fascinaram e influenciaram – mesmo que alguns pareçam antinômicos a outros.

6. O que você legou, da sua vivência no CEC, para as atividades profissionais que você exerceu (ou exerce)?
 
Depois da “morte” eventual do CEC em 1968, tornei-me professor de sociologia, disciplina que estudei durante os anos 60; depois que ele “renasceu”, em 1977, voltei a reunir na mesma respiração e inspiração o cinema e as ciências sociais. Meu campo de investigação e ensino, hoje, é a sociologia da cultura e da arte.
Diria que o cinema me fez um sociólogo mais livre, menos dogmático; e que a sociologia me fez ver e pensar os filmes com uma consciência mais ampla, mais rica.

7. Cite alguns personagens com os quais conviveu na sua vivência do CEC.
 
Jacques do Prado Brandão, Maurício Gomes Leite, José Haroldo Pereira, Cyro Siqueira, Victor de Almeida, Paulo Arbex, entre os mais velhos, que nos precederam como pioneiros do cine clubismo e da crítica.
Geraldo Veloso, Carlos Alberto Prates Correia, Ricardo Gomes Leite, Moisés Kendler, Flávio Werneck, Geraldo Magalhães, Mário Alves Coutinho, Paulo Augusto Gomes, colegas e amigos da minha geração, ou mais ou menos.
Alcino Leite Neto, Ivan Cézar Cláudio, Marcelo Castilho Avelar, Carlos Henrique Santiago, da geração 70-80, que tivemos o prazer de ajudar a formar e ver belamente frutificar.

8. O CEC foi criado sob a inspiração do exercício crítico; a construção de um cinema brasileiro a partir da formação no CEC "traiu" a sua vocação primeira?
 
De modo algum – todos aqueles amigos e companheiros de muitas jornadas que se tornaram cineastas, montadores, produtores etc. levaram para prática de fazer filmes o conhecimento do cinema do passado e do presente, e do exercício crítico sobre este cinema, que os ajudaram a fazer um cinema novo, inventivo e autoconsciente.

9. Examinando o apanhado de títulos e diretores brasileiros que passaram pelo CEC (ou se aproximaram de diversas formas com ele (CEC), como você vê a possibilidade de existência de um "cinema do CEC"?
 
Não penso que houve um “cinema do CEC”, nem “cinema mineiro” propriamente ditos. Os realizadores de filmes que passaram pelo CEC, militando no cine clubismo ou não, foram pessoas do seu tempo e lugar: mineiros, brasileiros, cosmopolitas. As “influências” que sofreram ou adotaram foram as que vieram das suas épocas, dos lugares onde viveram, das pessoas que encontraram pelo mundo; seus engajamentos foram com a contemporaneidade, com o mundo moderno, nos quais o CEC se situou diversamente, quer dizer, de acordo com cada um deles.

10. Você acredita numa "mística do CEC"?
 
Depende do sentido que se der à expressão. Para mim, só há “mística” quando algum ser ou coisa são destacados do fundo das coisas banais e são recobertos por uma aura de exceção, de excepcionalidade. Em parte, é uma ilusão benévola, mas não só: é também um reconhecimento de ter havido no passado momentos mágicos que, para nós, se tornaram caros, por amor ao cinema e aos feitos heroicos, que acreditamos ser preciso conservar na memória e continuar a reproduzir no presente e no futuro.
Penso que as várias gerações de cequianos, ao longo destas décadas, valorizaram a herança recebida dos pioneiros já citados – derivada da grandeza deles – e fizeram dela algo de valioso e intrinsecamente honrável, procurando estar à altura do que antes foi feito.

Ronaldo de Noronha é professor de Sociologia da Cultura, da UFMG, crítico de cinema, pesquisador e membro de Conselho Curador do CEC

CEC 60 ANOS - ENQUETE

Dois tempos do CEC

Sócio: Victor de Almeida


1. O Centro de Estudos Cinematográficos foi fundado no início da década de 1950 em Belo Horizonte. Então, a capital era uma cidade com muitas limitações culturais - na acepção de seus críticos mais cáusticos, tratava-se de uma aldeia com bonde. Para superar (e sobreviver ao) seu acanhamento cultural, as pessoas se reuniam em grupos. Havia grupos para as diferentes expressões artísticas e culturais, uns mais, outros menos organizados, que se reuniam em torno de seus interesses particulares como forma de se auto-alimentarem de informações mais atualizadas a respeito do que estava sendo feito no Brasil e no mundo.
O CEC se notabilizou por reunir o grupo de pessoas que, embora participassem eventualmente de outras iniciativas culturais, descobriam no cinema uma forma mais completa de ver o mundo, pela capacidade dessa arte de absorver todas as demais. Então, o cinema era o principal, senão único, lazer cultural praticado pela maioria da população. Alguns cidadãos mais atentos observaram que, do meio dos filmes programados semanalmente na cidade, havia obras que se destacavam pela sua originalidade. O cinema era um produto industrial, feito para a diversão das massas, mas também era uma forma de expressão artística. A crítica de cinema, exercida primeiro pelos irmãos Santos Pereira, depois por Cyro Siqueira, veio separar do volume de filmes produzidos pela indústria, sobretudo a de Hollywood, aqueles que, a seu juízo, mereciam ser melhor considerados pelos espectadores mais exigentes. Por isso, durante muito tempo, o exercício crítico provocou uma discordância entre os críticos e os jornais que os abrigavam e o público e os exibidores cinematográficos sobre as avaliações feitas por essas duas partes a respeito da qualidade dos filmes.
O CEC veio estabelecer um espaço próprio para aqueles filmes que não só a crítica, mas os espectadores mais críticos, destacavam da produção industrial norte-americana e das cinematografias lateriais, sobretudo européia. O cineclube concedeu tela para esses filmes e reuniu um auditório interessado em participar de estudos mais ou menos sistematizados a respeito dessas obras e de seus autores, bem como das cinematografias nacionais e seus representantes que mereciam atenção no quadro geral da produção cinematográfica mundial.
Durante pelo menos duas décadas, nos anos 1950 e início dos anos 1960, o CEC foi essa "janela para o mundo", atraindo pessoas com interesse específico no cinema, mas também militantes de outros grupos culturais, como da literatura, das artes plásticas, da música, do teatro, do jornalismo, da política etc. Para isso contribuiu, sem dúvida, a localização do CEC, no meio de um corredor formado, na Rua Curitiba, pelo cinema Art-Palácio (que exibia filmes italianos e também alemães, japoneses, indianos, mais tarde da nouvelle-vague e Antonioni), os jornais "Folha de Minas" e "Binômio", os centros de cultura italiana e portuguesa e, por fim, a Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.
O cineclube teve a capacidade de aglutinar elementos de quase todos os grupos - com a exceção daqueles mais tradicionais -, incluídos os católicos, que também viam no cinema um poderoso meio de influência, mas que se sentiam pouco à vontade entre intelectuais sensíveis ao existencialismo e ao marxismo; por isso, procuravam desenvolver seus próprios espaços de exibição e discussão.
A circunstância histórica de promover num ambiente acanhado um meio de expressão em ascensão no mundo atraiu ao CEC sucessivas gerações de jovens, principalmente, interessados em se incorporar a um acontecimento sem similar na cidade e que lhes permitia descortinar horizontes muito mais amplos. Além do cinema, o CEC promoveu, nas relações sociais que se estabeleceram entre seus participantes, o contato de muitos de seus associados com o que havia de mais atual no mundo na área da literatura, do teatro, das artes plásticas, da música, da política etc. Muitos frequentavam o CEC para se arejar intelectualmente por meio do cinema, mas muitos outros tiveram a sorte de dar nele o primeiro passo para se profissionalizarem na literatura, no jornalismo e no próprio cinema.     
O cineclube foi, indubitavelmente, um importante espaço de sociabilidade e conhecimento não só da arte cinematográfica, mas de tudo o que de mais avançado pudesse interessar a "intelligentzia" local. Ele foi um agente poderoso de transformação de muitas pessoas, libertando-as do ambiente limitado de uma Belo Horizonte provinciana para lhes apresentar outras realidades mais complexas e ricas. Só isso basta para definir a importância do CEC e a influência que teve, social e culturalmente, na formação de várias gerações de mineiros.

2.  Outro momento importante na vida do CEC foi quando o cineclube, depois de quase desaparecer, em consequência dos acontecimentos decorrentes do golpe de 1964 (muitos cequianos passaram meses na prisão), ressurgiu em 1965, realizando suas sessões cinematográficas dos sábados à noite no cinema da Imprensa Oficial. Corria então o governo Israel Pinheiro, que tinha sido eleito a contragosto do regime militar, e o CEC, dirigido por uma nova geração de cinéfilos, aproveitava a réstia de luz que ainda havia do regime abatido pelo golpe para manter viva a discussão cultural.
Com os filmes que circulavam no país, brasileiros e estrangeiros, não obstante a censura, o CEC se transformou então num vigoroso fórum de discussões com o qual confrontava o obscurantismo ascendente. Não obstante os percalços, isso durou até 1968, tendo sido realçado, numa entrevista, pela presidente Dilma Rousseff, quando candidata, como tendo sido essencial à sua formação. Moradora em Belo Horizonte, aluna do Colégio Estadual Central, a presidente era uma das frequentadoras das sessões da Imprensa Oficial, onde teve a oportunidade de assistir a "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, e também a filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Acertadamente, a presidente salienta que essa paixão pelo cinema tinha um sentido subversivo, como eram considerados então pelo regime todos os atos que de alguma forma não se submetiam à repressão e à censura à cultura.
Significativa desse período foi a exibição, na Imprensa Oficial, em 27 de maio de 1967, de um filme curto do cequiano Maurício Gomes Leite. Então trabalhando no Rio de Janeiro como jornalista. Ironicamente intitulado "O Velho e o Novo", o filme era uma homenagem ao crítico literário austríaco, naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux, que combatia a ditadura nas páginas do "Correio da Manhã" e que veio assistir à apresentação, junto com os escritores Antonio Callado e Carlos Heitor Cony e o jornalista Márcio Moreira Alves. Callado, Cony e Moreira Alves tinham sido presos, em 1965, junto com outros intelectuais brasileiros, quando denunciavam, em frente ao hotel Glória, no Rio de Janeiro, onde se realizava um encontro internacional, a tortura de presos políticos no Brasil. E Moreira Alves, em 1968, quando era deputado federal, foi escolhido pelo regime militar como bode expiatório para a decretação do Ato Institucional nº 5. Também é significativo que o filme que acompanhava "O Velho e o Novo" tenha sido "Tempo de Guerra", de Jean-Luc Godard.
Na Imprensa Oficial - e também no cinema Pathé, que também programava -, o CEC participou ativamente da grande efervescência cultural que tomava conta do país, não obstante a ditadura. A discussão cultural era o álibi, o substitutivo para a falta de liberdade política e de democracia no Brasil. O CEC ainda foi um dos organizadores do 1º Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, realizado dois meses antes do AI-5; mas com o endurecimento do regime, a saída que restou aos cequianos foi procurar outras formas de resistência. A luz projetada pelo CEC só voltaria a tremer numa tela novamente em 1979, como resultado de um compromisso com o processo de abertura política.

Victor de Almeida é jornalista, produtor cinematográfico, cineasta, Diretor Executivo do Instituto Humberto Mauro e é sócio histórico do CEC