quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A OBRA FINAL

Maurice Blanchot 
Tradução: Mário Alves Coutinho

         Ao redigir Uma temporada no inferno e o “Adeus” que a termina, se Rimbaud coloca um fim à suas relações com a literatura, isto não quer dizer que no mês de agosto de 1873, no dia tal, tal hora, ele se levantou e se retirou. Uma decisão de ordem moral pode, a rigor, não ter necessidade senão de um instante para se cumprir: tal é sua força abstrata. Mas o fim da literatura é novamente toda a literatura, pois ela deve encontrar nela mesma sua necessidade e sua medida. Admitamos, como é possível e, penso eu, provável, que Rimbaud tenha continuado a fazer obra poética, depois de ter enterrado sua imaginação e suas lembranças: o que significaria esta atividade continuada e esta sobrevida? Primeiramente, que sua ruptura não foi somente “um dever”, como ele pôde pensar momentaneamente, mas respondeu a uma exigência mais obscura, mais profunda e, em todo caso, menos determinada. Em seguida, que para aquele que quer enterrar sua memória e seus dons, é ainda a literatura que se oferece como terra e como esquecimento.
Penso que Bouillane de Lacoste, devido às suas polêmicas, seus estudos e sua concisão, nos prestou grande serviço, precisamente nos afastando da possibilidade de dar a este fim a simplicidade que agradava nossa imaginação, mas não teria concordado senão com uma decisão moral. Fomos tentados a esquecer de que é necessário tempo para desaparecer e que o poeta que renuncia a si mesmo é ainda à exigência poética que ele é fiel, mesmo como um traidor. Exigência que passa pela literatura e deve reconduzir a ela. De todas as maneiras, e Rimbaud teria escrito não somente as Iluminuras, mas os milhares de versos que encontramos de tempos em tempos em Harrar, Uma temporada continua sendo a obra final, mesmo se não foi escrita por último, mesmo se ela teve necessidade do amadurecimento das outras prosas para desembocar, de uma maneira mais verdadeira e mais experimentada, sobre o silêncio.
Não temos prova definitiva de que em Londres, um ano depois da ruptura ou mais tarde, Rimbaud tenha praticado uma ação de poeta. Em compensação, e por duas vezes, ele agiu como homem de letras: uma primeira vez, copiando – passando a limpo – seus poemas em companhia de Germain Nouveau (se aceitarmos sobre este ponto as constatações materiais de Bouillane de Lacoste); depois, em 1875, em Stuttgart, remetendo através de Verlaine a Nouveau “poemas em prosa”, “para serem impressos”. Nós sabemos, pois, que até 1875 ele guarda uma certa preocupação literária. Mesmo não escrevendo, ele ainda se interessa pelo que escreveu, ele torna a passar pelos caminhos que traçou. Eles os mantém abertos como uma possibilidade de comunicação com seus amigos. Antes, devido à Temporada que ele tomou o cuidado de fazer editar, nós tínhamos o pressentimento que ele não dirigia contra sua obra uma vontade simples de agressão e de destruição: o que ele deixou transformar-se em palavras, deve também se transformar em palavras impressas; depois do que, ele não se preocupa mais, aparentemente, com esta parte dele mesmo que cessou de lhe pertencer.
A análise das Iluminuras e da Temporada são difíceis, é evidente: não por razões anedóticas ou tolamente míticas, mas porque estas duas obras (chamemo-nas assim, pois são volumes comuns nas nossas bibliotecas) não são redigidas pela mesma mão, nem no mesmo nível de experiência. Por um lado, a Temporada diz tudo; é neste sentido que ela é escrita bem no fim, quase como uma exceção; e nesta última visão, o poeta das Iluminuras, como a empreitada que tentou escrevendo-as, encontram lugar e se afirmam necessariamente no passado. A maior parte dos traços ao quais ele se serve para definir e denunciar sua tentativa (lembro-os vagamente: os poderes sobrenaturais, a ambição de alcançar o todo e em primeiro lugar o todo do homem, o poder de viver uma pluralidade de vidas, o desvelamento dos mistérios, a aproximação e a descrição de todas as paisagens possíveis, o estudo, o poder do ritmo, o uso das alucinações e do veneno), toda esta história de seu espírito, toda esta experiência tal como descreveu como vã, faz precisamente alusão aos propósitos realizados nos fragmentos em prosa e faz alusão a isso como a qualquer coisa que já aconteceu e que ele percebe como terminado.
Daí, me parece, a segurança com a qual os comentadores afirmaram a anterioridade das Iluminuras, não necessariamente por amor do mito, mas porque parece difícil de situar depois da Temporada a composição de uma obra a qual esta última faz o exame e que ela devolve ao passado.
Penso que é necessário ter em conta esta verdade. Ainda que redigidos em seguida, os poemas em prosa pertencem a um tempo “anterior”, este tempo particular da arte, com o qual quer precisamente acabar o que escreve: “Sem palavras”, ser profético, que procura por todos os meios um futuro e procurando-o a partir do fim já acontecido. Em outras palavras, o “Adeus” dá por concluídas (e terminadas) as possibilidades que são aquelas da arte em geral, aquelas que realizarão ou que realizaram as Iluminuras. A questão que se coloca é a seguinte: neste instante em que a poesia termina e a literatura se acaba – ambas não sendo uma atividade simplesmente estética, mas representando a decisão de estender ao limite extremo o poder do homem liberando-o antes de tudo da divisão da moral e lhe restituindo uma relação de domínio das forças primeiras – neste instante onde lhe é preciso renunciar à poesia como futuro, futuro que é o “desempenho”, o desdobramento de todas as possibilidades humanas pela poesia, que lhe resta, qual será a saída? A Temporada é a procura de uma resposta, a qual, sabemos, é de uma surpreendente, de uma enigmática firmeza.
Agora, este último livro não diz que seu autor não escreverá mais; ele diz o contrário desde o seu preâmbulo (redigido provavelmente por último), com uma frase que qualifica por antecipação as futuras realizações literárias às quais prevê que ele se abandonará (talvez, também, porque elas já estão acontecendo): e esperando certas pequenas covardias em atraso, vós que amais no escritor a ausência de faculdades descritivas ou instrutivas, eu destaco para vós estas hediondas folhas da minha caderneta  de amaldiçoado. Penso que estas palavras difamadoras caracterizam em qual estado de espírito um homem que se situa no fim do tempo poético (fim também das ilusões da magia poética) considera o próximo e último trabalho: ele vê nele uma falta de rigor, ele o julga anacrônico; mas reciprocamente, se “algumas pequenas covardias” que lhe restam por cumprir para terminar com a poesia estão “em atraso”, é que a afirmação do fim é uma antecipação e anuncia prematuramente o novo momento, este momento severo que verdadeiramente marcará para ele a reviravolta da história, a Temporada sendo ela própria esta palavra da reviravolta onde dá volta, de uma maneira vertiginosa, o tempo.

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As relações das Iluminuras e do “Adeus” estarão, desta maneira, definitivamente resolvidas? Não. Porque, se é verdade que os poemas em prosa estão compreendidos por antecipação no acerto de contas final, mesmo a título de obra ainda atrasada, não é menos verdade que, mesmo respondendo à idéia de uma arte condenada (condenada como “mentira” e como “tolice”), eles pertencem a uma região outra de onde vem a nós uma potência nova, uma afirmação soberana, mesmo e talvez sobretudo quando ela exprime a necessidade do fracasso. Estamos diante de um movimento misterioso do qual não nos aproximaremos colocando-o em relação com incidentes biográficos (que, aliás, ignoramos). Bouillane de Lacoste diz que Rimbaud encontrou em 1874 ao lado de Germain Nouveau o equilíbrio e a saúde; uma saúde que passa sempre pela droga, se, como entende Yves Bonnefoy, “o tempo dos assassinos” pertence à esta nova estadia em Londres, mas constitui desta vez uma experiência bem sucedida, enquanto que, nos anos precedentes, ela não era outra coisa senão estupor, loucura, inferno[1]. Mas porque uma tal mudança? Qualquer nome que usarmos, isto constitui o inexplicável. Estudando os poemas “Jeunesse” [Juventude], “Vies” [Vidas], “Guerre” [Guerra], “Génie” [Gênio], “Solde” [Saldo], em relação com “Matinée d’ivresse” [Manhã de embriaguez] (apoteose da droga), Yves Bonnefoy se pergunta se a mudança não viria da relação recentemente descoberta entre o “veneno” e a “música”, esta sendo uma das chaves das Iluminuras, na medida em que se afirma “uma realização como que sinfônica da natureza do homem, um desencadeamento, mas rítmico, coerente, dançante, das virtualidades de sua essência”. Nestas passagens, diz ainda, “tudo se organiza em torno de duas noções essenciais: o de uma empreitada nova, de uma invenção, e a de uma harmonia”, a que o cálculo deve procurar tornar-se mestre. Análise que caracteriza talvez justamente a tentativa, mas em que esta seria novidade? Em “Vagabonds” [Vagabundos], esta prosa que, qualquer que seja a data de sua composição, evoca o tempo vivido em comum com Verlaine, encontramos alusões claras a estas mesmas pesquisas: de um lado, à empreitada (o “compassivo irmão” lhe censura de não agarrar assaz “fervorosamente esta empreitada”); por outro lado à musica, à criação através da música dos fantasmas do futuro luxo noturno, tais quais os tornam precisamente visíveis, à luz de um instante, diversos poemas das Iluminuras (“eu criava, do outro lado do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do futuro luxo noturno”). Rimbaud qualifica ironicamente este exercício de “distração vagamente higiênica”, de onde Yves Bonnefoy conclui que o momento do triunfo que “Matinée d’ivresse” celebra ainda não aconteceu, mas podemos também dizer que o triunfo é passado, neste momento tardio de lucidez e sobriedade que o julga, e é em direção a esta conclusão que se orientam outros comentadores, particularmente um dos últimos, para quem o tipo de otimismo “progressista” que atestam poemas como “Génie”, “A une Raison” [A uma Razão], “Mouvement” [Movimento], nos remetem a um período bem anterior, quando o iluminismo social permite perceber um instante, para a humanidade em marcha, num futuro de razão e amor. “Otimismo que não será mais de temporada, no momento de sua crise espiritual e moral de 1873[2].”
Evitarei, entretanto, de retomar uma tal conclusão. Parece-me que ao escutar estes poemas, ninguém pode duvidar: o que diz “Génie”, o que diz “Guerre”, “A une Raison” , “Départ”, e mesmo “Solde” tem uma plenitude de afirmação, uma confiança decisiva, uma medida também e uma autoridade que não levanta nenhuma analogia e não convém a nenhum período conhecido da vida de Rimbaud. Certeza que devemos exprimir dizendo simplesmente: as Iluminuras pertencem a um tempo outro, que este tempo seja anterior, posterior à Temporada, ou que seja contemporâneo; ou ainda e mais claramente: estas duas obras reúnem a cada vez toda sua experiência, do começo ao fim, em torno de um centro diferente, e esta retomada, porque ela se cumpre segundo uma forma e a um nível incomparáveis, faz de cada uma delas um espaço exclusivo, uma afirmação que impele o outro para o passado. Quando lemos as páginas escritas de abril a agosto de 1873, lemos, isto não é duvidoso, o que ele escreveu por último, e é necessário acreditar nisso, pois ele toma a precaução de nos dizer, as Iluminuras não aparecem mais como um excedente, num tempo já recusado, redigidas, aqui e ali, nos interstícios dos dias, por demais literárias (no sentido de um certo cuidado precioso com as palavras) para poder tomar lugar numa vida daí em diante sem literatura, de outra maneira que por “covardia”. Mas se nós chegamos a esta outra palavra e se podemos estabelecer-nos à altura que ela nos convida, então tocamos num dia tão dominador, tão extenso e tão impessoal que é o conjunto de uma existência inteira ainda desconhecida que ele parece esclarecer, como se o todo da vida e da experiência estivesse novamente escrito de um extremo ao outro, recobrindo, apagando, anulando qualquer outra versão possível.
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Um livro sobrecarrega um outro livro, uma vida uma outra vida, palimpsesto onde o que está debaixo, por cima, muda segundo as medidas e constitui sucessivamente o original, enquanto único. Esta obrigação de ler Rimbaud, tanto da perspectiva final da Temporada, quanto na perspectiva última das Iluminuras, pertence necessariamente à verdade que lhe é própria, nos rendendo sensíveis o resultado ambíguo da poesia: se a poesia deve cada vez conter seu fracasso; mas, por uma vez, o fracasso é o fim abrupto do “Adeus” (a contestação decisiva que ela própria se exclui da verdade que significa), e, de outro lado, o fracasso é a despedida solene e calma do “Génie” que é necessário “saber” retornar, pois não existe gênio senão no movimento, na clareza, desvio da desaparição. Como escolheríamos nós, de fora e através de descobertas eruditas (úteis, bem entendido), um dos desenlaces contra o outro? Como, de dentro, nos aproximarmos mesmo do que significa a necessidade da contradição?
Certamente, pela análise, nós podemos ainda dar alguns passos e assim melhor nos orientarmos em direção ao centro destas duas obras. O centro: o aguilhão, a ponta de secreta dor que, na pressa e sem descanso, inquieta a figura, longe de a deixar se circunscrever segundo uma narração desde então determinada. Qual será o centro? Se não pertence ao comentador decidir isto por autoridade ou por saber, nós podemos tentar esta aproximação, sob forma de interrogação, perguntando: qual é, em dado caso, a relação do centro ao eu presente de Rimbaud? E se nós pressentimos que não é o mesmo eu, porque aquele que diz Eu o diz ora (e é na Temporada) com uma urgência pessoal que mantém, mesmo através de metamorfoses esboçadas no “Mauvais Sang”, uma relação violenta de presença; ora impessoalmente, a partir de um longe ou de um esquecido irrevogável, mesmo quando em “Jeunesse” ou em “Vagabonds” ele se relaciona ainda decididamente a si mesmo. Donde vem, nas duas obras aonde tudo chega ao fim, a afirmação do porvir que obstinadamente nelas se reserva? É o mesmo porvir? E nós pressentimos que, se a palavra fala cada vez por antecipação, palavra de um presente onde se diz um futuro, o que acontece não é o mesmo que o acontecido: dado ora numa espera do fim desperto, que é de fato “a vigília”, esta vigilância da promessa na qual Rimbaud, o silêncio ganho, destina-se vitoriosamente à “verdade” tangível; ora na realização de todo o possível do homem, possibilidade imensa onde não importa mais que Rimbaud esteja presente; - como se, em outros termos, o futuro da Temporada se desse por pessoalmente acessível àquele que renuncia à impessoalidade e à vastidão mágica da palavra poética, mas como se as Iluminuras designassem este futuro infinito onde nenhum indivíduo particular soubesse encontrar seu lugar e que não se deixa dizer senão por aquele que já renunciou nesta palavra. Nos dois casos, existe renúncia, mas a renúncia à palavra poética parece, em Uma Temporada, prometer um futuro pessoal de verdade, enquanto que a renúncia das Iluminuras é renúncia a toda saúde particular em favor da palavra já impessoal na qual se reserva a possibilidade de tudo aquilo que vem.
Enfim, esta última questão que retoma as duas outras: é manifesto que, numa e noutra obra, a rapidez é o traço essencial da palavra, seu poder de alcance e a chance de dizer o essencial[3]; então, por que o movimento das duas escrituras é tal que não saberíamos submetê-los à mesma medida? Pois, na Temporada, a precipitação é necessidade vital. A necessidade onde se encontra o escritor de responder ao mesmo tempo a somatórios opostos, este arrebatamento que somente lhe permite resistir às exigências adversas  de toda sua vida, faz deste texto o mais crítico que possa nos dar uma literatura. Mas, nas Iluminuras, se a prontidão do pensamento que se desloca é menos visível, não é que o movimento seja menos rápido, nem menos vasta a extensão conquistada por este movimento: ao contrário, o espaço ocupado compreende todo o espaço do homem em seu porvir, somente concentrado nos limites mais estritos; a mão do poeta se fecha sobre o que ela agarrou: cada fragmento, depois cada palavra restringe num lugar único o percurso de todos os tempos e segundo todas as maneiras e por toda parte; todo o possível humano, que não é somente o possível do saber ativo e do pensamento reflexivo, mas, como diz de uma maneira tão feliz Yves Bonnefoy, também um possível de glória, se retira, pela contração da forma (a “fórmula”), na unidade de um “lugar” central, lugar de concentração que é menos o centro que seu imóvel brilho.
As Iluminuras, por mais dispersas que as circunstâncias no-las tenham restituído, por mais estranhas que elas permaneçam às estruturas de uma composição bem encadeada, por mais instáveis que elas sejam, têm por movimento a atração mais direta e a mais decidida em direção a um centro possível, explosão que, explodindo, retine no seu lugar de origem, enquanto que a Temporada, afirmação simultânea de todas as posições contraditórias, prova efetuada da contradição mais viva, é a experiência de um pensamento caçado e expulso de seu centro, que ela descobre ser o impossível” e que ela se aproxima o mais perto, precisamente neste desregramento que a impele, dispersada, para o exterior. Mas o que carregam estas palavras: “possível”, “impossível”? É menos o segredo de Rimbaud que o nosso, quero dizer nossa tarefa e nosso desígnio. Certamente, é fácil dizer que estes nomes são as duas maneiras de nomear o “desconhecido”, os dois modos de aceder ou de se ligar ao que é outro. E é fácil ainda sugerir que “voltar-se para...” e “desviar-se de...”, estes dois movimentos que não podem ser separados nem reconciliados, designam já por seu sentido o porvir da possibilidade e a impossível presença. Movimentos que a direção das duas obras poéticas nos ajuda a começar a reconhecer.
*
Entretanto, Yves Bonnefoy diz mais e eu queria, para terminar, trazer de volta suas reflexões, porque elas são sem preço. Rimbaud nomeou o fogo, afirmando ou prometendo a participação imediata na chama do que é. “Eu vivi, centelha de ouro da luz natureza.” Mas, em outro lugar:

Vis et laisse au feu 

L’obscure infortune.

[Viva e deixe ao fogo/ O obscuro infortúnio]
 
Existe então o fogo do ser, comenta Yves Bonnefoy, ou da procura do ser, mas o que é o obscuro infortúnio, qual é a infelicidade obscuramente associável ao fogo e do qual aquele que vive deve se distrair? Poderia ser que “a poesia nos empenhando inteiramente na busca da unidade, numa relação tão absoluta quanto possível com a presença mesma do ser, não faça... senão nos separar dos outros seres...”. Assim, “tendo querido... encontrar a realidade na sua profundidade, na sua substância, o poeta a perde tanto mais no que se refere a harmonia e comunhão”. Esta contradição fundamental, Rimbaud a experimentou diversamente e em níveis diferentes, segundo os movimentos próprios de sua vida e da sua busca: é a contradição nele de uma força e de uma falta; a força, é sua energia indomável, o poder de invenção, a afirmação de todos os possíveis, a infatigável esperança (a embriaguez, a Visão na sua Felicidade); a falta, é, em seguida ao “coração roubado”, a privação infinita, a miséria, o tédio, a separação, a desgraça (o sono). Mas, de novo, e a partir deste defeito essencial, a poesia, em Rimbaud, se vê confiar o dever de transformar a falta em recurso, a impossibilidade de falar que é a desgraça em um novo futuro da palavra, e a privação de amor em exigência do “amor a ser reinventado”: como se, para retomar uma outra expressão de Yves Bonnefoy, a degradação do ser em coisas inertes e produzidas (objetos, sociedade classificada, stupra, religião moralizada) devesse ser guiada e assumida pelo poeta, colocada por ele em relação com o que tem sempre de futuro na presença poética. Mas a contradição continua: contradição entre a procura pessoal de uma salvação (no sentido de uma verdade a possuir numa alma e num corpo, procura própria da comunicação) e a experiência impessoal onde se esconde o neutro, quer dizer ainda a contradição entre a necessidade de comunicação que deve se afirmar a partir da infelicidade e pela “ardente paciência” do homem sofredor, e a necessidade de comunicação que se afirma a partir do fogo e pela compreensão sábia, impaciente, estática e gloriosa do homem conquistador.
         Mas, aqui, eu creio que é necessário evocar Hölderlin para quem, como para Rimbaud, a palavra fogo e a palavra luz representaram “a felicidade” e “o obscuro infortúnio”. O que diz Hölderlin de “o imediato” que é “o impossível”, deveria nos ajudar a entrar na obscuridade deste dia que é entretanto o dia comum, comum a todos e a todo instante: é que do fogo vem toda comunicação, mas o fogo é incomunicável. Nos rememorando de um tal saber para nós necessariamente ainda muito abstrato, escutemos as palavras simples:
Feu, viens à présent!
Nous désirons
Voir le jour...
[Fogo, venha imediatamente!/ Nós desejamos/ Ver o dia...]
(N. do T.): Todas as citações, nome de poemas e de livros foram vertidos (em alguns casos, como nos títulos dos livros de Rimbaud, escolhendo dos títulos existentes em português aquele que achei o mais adequado) pelo tradutor deste ensaio.


[1] Refiro-me, aqui, aqui, ao ensaio de Yves Bonnefoy, tão próximo do assunto que ele trata na sua reflexão comedida: Rimbaud par lui-même (éditions du Seuil).
[2] Suzanne Bernard: sumário biográfico, introdução, prefácios e notas, Oeuvres de Rimbaud (Classiques Garnier)
[3] “Em Rimbaud, a dicção precede de um adeus a contradição. Sua descoberta, sua data incendiária, é a rapidez” (René Char.)

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