domingo, 21 de agosto de 2011

30 ANOS SEM GLAUBER

     Comer e coçar, é só começar. E conversar. Sobretudo sobre a memória. A formação edípica nos leva à obsessão pela reconstituição do passado. O passado em nós. Somos uma construção progressiva do que vivemos. E o passado não é preciso, não é exato. É filtrado pelas emoções, pela afetividade, pela seletividade aleatória. Alain Resnais tornou a memória matéria prima de sua construção artística. O cinema de Resnais é a busca de um Édipo marxista (não seria esta a razão de Pasolini ter filmado Sófocles, algum tempo depois de "Toute la Mémoire du Monde", "Nuit et Bruillard", "Hiroshima, Mon Amour" e, sobretudo, "L'Anné Dernière a Marienbad" - ou Baden Salsen?).

     Um dia, lá se vão quase cinquenta anos, entro no Copacabana Palace, depois de cruzar, em uma butique do bairro, com Troy Donahue, bonito, coloquial e descontraído, onde compro uma blusa de banlon. A cidade estava coalhada por estrelas. Arnaldo Jabor filmava tudo que acontecia no I FIF (Festival Internacional do Filme, do Rio), organizado por Moniz Vianna. Lá dentro encontro, na sala de imprensa, com Glauber Rocha excitadíssimo que me pega pelo braço e me diz: "Vem cá, quero te apresentar a uma figura.". A "figura" cresce em minha frente de forma assustadora. Está de costas e enquanto vira-se para nós, torna-se maior ainda. Glauber, à sua maneira, arrisca um inglês em direção ao personagem: "Mr. Lang, I want you to meet a young brazilian film maker". Mr. Lang não era ninguém menos que, Fritz Lang. Uma nuvem cobriu meus olhos e acho que perdi a fala. Estendi a mão em direção a Mr. Lang, gaguejei qualquer coisa e fiquei ali, perplexo, enquanto Glauber falava com Fritz. À minha cabeça volteavam, alucinadamente, cenas de "Metropolis", "Frau im mond", "Mabuse's", "Os Nibelungos", "M", "You Only Live Once", "Moonfleet", "O Tigre de Bengala", "Sepulcro Indiano", "Hangmen Also Die", "Cloak and Dagger" e outras imagens (um diretor de cinema rodando "Odisséia", à beira do Mediterrâneo, enfrentando um produtor americano que falava, "Quando ouço falar em cultura, saco o meu talão de cheques", sob os olhares de um casal em desagregação, vivido por Michel Piccoli e Brigitte Bardot e um tema de Légrand - ou Délerue? - numa leitura de Moravia, um comunista togliattiano). Mr. Lang me olha elegantemente através de seu monóculo, de cima de seus quase dois metros de altura e me aperta a mão. Não tinha o que dizer. À minha frente, apresentado por uma das maiores admirações que havia cultivado nos últimos anos, Glauber Rocha, estava um dos maiores arquitetos (literais) do cinema moderno (ou do cinema, ele mesmo). Minha vida tinha se tornado um furacão. Muita coisa ocorria simultaneamente para um menino de vinte e um anos. Uma nova geografia para viver, um amontoado de pesonagens míticos desfilando à minha frente, me tratando como um "young brazilian film maker", novos desafios afetivos, um vulcão de sonhos que pareciam reais (e eram reais).

     Colaborava com a pós produção de "O Padre e a Moça" e estava dando cobertura à montagem ao primeiro filme do CEMICE, dirigido por Carlos Prates Correia, "Milagre de Lourdes". Eduardo Escorel montava o filme na moviola do "Patrimônio" (SPHAN), ancorada em Santa Teresa, na casa do Benjamin Constant (em restauração). Por ali circulavam Cacá Diegues, montando "A Grande Cidade" (com Gustavo Dahl), Paulo César Saraceni (dando retoques finais em "O Desafio") e Davi Neves, a figura de ligação de tudo, pontuando com seu humor cortante, preciso e agregador. "Milagre de Lourdes" ficou pronto numa tarde e "Pesce Cane" (Carlos Prates) não estava no Rio. Tive notícias que o filme estava disponível para vermos e resolvi, com Escorel, dar uma olhada no bar Lutécia, do outro lado da rua Álvaro Ramos (sede da Lider Cine Laboratórios). Lá estavam Glauber Rocha e Paulo César Saraceni. Chamei-os para ver o filme. Dez minutos depois (é um curta metragem) Glauber e Paulo César saiam entusiasmados da sessão: "Genial! Surge um Buñuel brasileiro!" e outras observações da mesma dimensão.

     Fiquei amigo de Glauber e comecei a desvendar um segmento do Cinema Novo que ocorria na Rua da Matriz, em Botafogo. Morava com Escorel, em Botafogo e tudo parecia acontecer por ali. A turma da Rua da Matriz começou a "aparecer" para mim: Cacá Diegues (que morava na esquina da Matriz com Voluntários da Pátria), Davi Neves (que, por sua vez, morava na São Clemente, em frente à esquina da Matriz, com sua mãe, D Alaide e o pai, General Luiz Neves e seus trenzinhos de montar, além de um irmão), Paulo César (que me convidava para ser seu assistente em "Capitu", morava em um prédio "arquitetura Niemeyer", na São Clemente, ao lado do quartel da Polícia Militar), Fernando Duarte, Luiz Fernando Goulart, Affonso Beato, João Carlos Horta eram da "turma da Matriz", que freqüentava a casa da Rosa Maria Penna, a Rosinha, naquele momento mulher do Glauber e sua atriz ("Dragão da Maldade", um tempo depois), assim como de Davi ("Memória de Helena"). No FIF, a casa de Luis Carlos Barreto era o ponto de encontro de Roberto Rossellini e Jean Rouch. No porão, da Rua 19 de Fevereiro, com Mena Barreto, a produtora abrigava o equipamento e a moviola manejada por Raimundo Higino (meu primeiro "chefe", diretor de produção de "O Padre e a Moça"). Trabalhava ali quase todos os dias tentando organizar a contabilidade do filme do Joaquim. No quintal os "meninos" faziam cinema (Bruno filmava Paula e a Baleia, para o seu primeiro filme, apresentado no II Festival de Cinema Amador JB/Mesbla).

     Glauber sempre foi fascinado pelos "mineiros". Mas era uma amor pontuado pelo ódio. Em 1957, ainda menino de dezoito anos, veio a Minas conhecer a "turma da Revista de Cinema" (motivado pelo mestre "maior" de todos nós, Paulo Emílio Salles Gomes e seu mentor - de Glauber - Dr. Walter da Silveira). Propôs um projeto para o novo cinema brasileiro. Os baianos já começavam a filmar. Trigueirinho Neto estava por lá e começado uma "onda" que levaria ao novo cinema baiano de Roberto Pires, Olney São Paulo, Rex Schindler (como produtor), Luis Paulino dos Santos e, depois, Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno, Orlando Senna, Alvinho Guimarães e muitos outros, com a experiência de "Bahia de Todos os Santos". Alex Viany já aparecia para fazer o seu "Sol Sobre a Lama". E a Bahia incendiava com o Grupo Mapa, com a Jogralesca, com o trabalho de Martim Gonçalves, no teatro. E Luiz Paulino chamava os mineiros Flávio Pinto Vieira e Schubert Magalhães para o trabalho de assistentes, em "Barravento". Os acidentes de filmagem levaram Glauber a "tomar conta" do filme e os mineiros tomaram as dores de Paulino, em um dos episódios da gênese do cinema brasileiro contemporâneo, mais polêmico e que pontuou, por anos, uma radicalização de "tribos" protagonistas dessa cena cinematográfica. Os paraibanos, sob a liderança de Linduarte Noronha, já propunham um novo olhar documental sobre a realidade brasileira ("Aruanda").

     Os mineiros passaram ao largo do convite de Glauber. Cyro Siqueira, nosso maior mentor crítico, responsável direto pelos fenômenos que repercutiam Minas (o CEC e a Revista de Cinema) recusava-se a "fazer" cinema. Defendia, explicitamente, a posição de pensador do cinema. E os tempos eram de descoberta do "fazer". A crítica francesa dava as "deixas" (Bazin morreu no alvorecer da aventura de seus discípulos, em direção à realização - Bazin teria partido para a realização? Seu contemporâneo e cúmplice, Rohmer, o fez).

     Glauber sempre foi um "agitador" cultural, polimorfo (e "perverso" como o definia, numa tipologia psicanalítica, seu amigo e admirador, Eduardo Mascarenhas) e ebuliente. Seu processo criativo passava pela crítica (seus textos na revista Senhor nos indicavam suas fascinações por Luis Buñuel e nos davam o diário de filmagem em Cocorobó) e pela ação criativa. Sua compulsão criativa nos dava textos com valor literário e polêmico. O livro de textos, "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro" (editado pelo Ênio Silveira) é uma bomba lúcida, um mergulho crítico na trajetória do cinema brasileiro. De Mauro a Mário Peixoto, passando por Cavalcanti e o cangaço (de cuja inspiração, filtrada pelo texto de Ruy Facó, "Cangaceiros e Fanáticos", vão surgir os fundamentos para "Deus e o Diabo ", com a colaboração de um dos mais brilhantes poetas e pesquisadores da literatura oral, da tradição mítica do sertão nordestino, Paulo Gil Soares, mesclada ao genial cinéfilo, colaborador do "Correio da Manhã", Walter Lima Júnior - que nunca mais vai abandonar a realização, numa trajetória pessoal extraordinária), Glauber cria um dos primeiros recortes críticos do cinema brasileiro, contundente e, ao mesmo tempo, esclarecedor. O iconoclasta Glauber derruba o mito "Limite", em benefício do "operário" poeta, Humberto Mauro. Mauro se torna o farol do novo cinema desejado para o projeto de construção de um dos capítulos mais ricos da trajetória da cultura brasileira contemporânea: o "Cinema Novo" (junto com o modernismo, com o Teatro de Arena, com a Bossa Nova, com Niemeyer, Portinari, Guimarães Rosa, etc.).

     Quando tudo isso acontece há uma complexidade e emaranhado de ações que torna o momento histórico produtor de um série de fenômenos marcantes naquilo que apontamos. Glauber vem para o Rio e convida Nelson Pereira dos Santos (um ícone de pioneirismo e ousadia criativa, de pecepção de necessidades de ação no ambiente político cultural, fiel a uma trajetória que vinha sendo proposta por uma série de dados que lhe antecedem - Cavalcanti de "Simão, o Caolho", e "O Canto do Mar", Alex Viany de "Agulha no Palheiro" e "Rua Sem Sol", Carlos Alberto Souza Barros e César Mêmolo, de "Osso, Amor e Papagaio", Galileu Garcia, de "Cara de Fogo" entre outros, como Moacyr Fenelon, José Carlos Burle, Rodolfo Nani, etc.), para montar "Barravento". O CPC propunha um projeto de cultura nacional popular e o teatro de Arena estende seus braços para o morro (já descoberto, anteriormente, por Mauro e Welles, para o cinema) e para o campo, pontuando as Ligas Camponesas, do Francisco Julião (via Movimento Popular de Cultura, do Arraes, em Pernambuco), com Guarnieri (com quem Nelson Pereira se alia na primeira direção de Roberto Santos, "O Grande Momento") e Vianinha ("Gimba", "Chapetuba Futebol Clube"), dando as indicações de caminhos dramatúrgicos (com Boal e outros, criando um novo teatro colado na realidade brasileira, além dos padrões do TBC, de Zampari e seus textos nacionais, de Abílio Pereira de Almeida). Daí surge "Cinco Vezes Favela": quatro novos diretores, ativistas (Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e o "menino", Cacá Diegues se unem a um "experiente" cineasta, recém saído do IDHEC e do Museu do Homem, do Rouch e do Morin, Joaquim Pedro de Andrade (que já tinha feito o seu "Couro de Gato" e o une aos episódios dos novos companheiros) e radicalizam o projeto de um novo cinema para dar substância à transformação política que se anunciava no país. Paulo César, vindo do Centro Sperimentale di Cinematografia, de Roma, nos dava "Arraial do Cabo" (em parceria com Mário Carneiro) e, logo em seguida, numa outra perspectiva dramatúrgica, proposta por seu amigo Lúcio Cardoso, fazia o seu "Porto das Caixas". Roberto Farias, vindo da Atlântida, assistente de Watson Macedo, busca novos rumos para um discurso crítico pelo cinema, com o seu "Cidade Ameaçada" e, logo em seguida, "Assalto ao Trem Pagador" (que revela um novo produtor, Luis Carlos Barreto que, em seguida, vai produzir "Garrincha, Alegria do Povo", para Joaquim).

    Um moçambicano formado em Paris, chega e começa uma trajetória paralela (e não contrária), com um projeto "urbano", "Os Cafajestes", misturando Norma Bengell (vinda das coxias dos shows do nosso Florence Ziegfeld, Carlos Machado, revelada para o cinema por Ileli e Manga), com um ícone do teatro e do cinema (via Nelson Pereira dos Santos, com quem tinha feito "Rio Quarenta Graus", "Rio Zona Norte" e "Boca de Ouro", da peça do sogro de Jece, Nelson Rodrigues) o gênio Jece Valadão e um menino bonito, rato de praia de Copacabana, nascido do mundo das variedades, muito talentoso, Daniel Filho, dá novo tempero ao caldo rico do cinema que se fez naquele momento. O moçambicano era Ruy Guerra. Não eram homogêneos e não criaram um cinema "uno", esteticamente. As propostas eram muitas e não necessariamente coincidentes. O debate intelectual (e ideológico) era intenso. Mas o cinema se renovou, se afastando da comédia musical (que, juntamente com o rádio, eram absorvidos pela televisão, cada vez mais poderosa) e do cangaço (embora ainda utilizado, como tema revisto e relido), em busca de um novo olhar sobre o país e seu povo.

     E Glauber Rocha chega como um incendiário visionário e profeta. Propõe a estética da fome como um projeto (via Frantz Fanon) possível para um cinema do que ele sempre chamou de "terceiro mundo". Eduardo Coutinho vai para o sertão nordestino e começa a filmar a saga de um militante das Ligas Camponesas, José Pedro Teixeira, assassinado pela sua atuação agregadora, em direção ao sonho da reforma agrária. O golpe militar interrompe o projeto e o filme, clandestinamente, é escondido para surgir, vinte anos depois, numa experiência inédita no cinema, de complementação e retomada de um tempo e de uma trajetória de seres atuados pela história.

     Glauber é o agitador, o polemizador, aquele que dá a cara a tapa. Briga com Carlos Lacerda (que havia criado a Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica, num acordo da elite carioca para atender aos seus filhos - da elite - e que deu substância às fornadas posteriores do Cinema Novo) e com os novos gestores da política cinematográfica do país (INC, CAIC, etc.). E a crítica oficial.

     No dia que saí do Cine Brasil, convencido de que, depois de "Vidas Secas", seria difícil algo que nos oferecesse impacto maior na produção nacional, a perplexidade era muito grande. "Aluguei" uma cadeira no cinema e fui rever o filme umas quinze vezes. "Mais fortes são os poderes do povo" (anos depois, colocamos a frase na abertura do nosso programa sobre cinema, que fizemos na Rádio Inconfidência - FM, de Belo Horizonte, eu e Victor de Almeida, "Revista de Cinema", sob a "proteção" de Claudinei Albertini, o diretor da rádio, na época). O impacto veio. Em dez minutos de filme, Glauber nos dava a possibilidade da catarse que Fabiano não conseguiu em sua amarga e "graciliana" visão do "real" esquema de poder que permeava o país rural brasileiro ("Governo é Governo"). Glauber criava para nós um ópera épica, literária, musical (Villa Lobos e Sérgio Ricardo, como um cego Júlio/Tirésias, comentando brechtianamente o destino do ser-tão), mítica, poética, "primitiva", violenta, cinematográfica, shakespeareana, grega, etc. As referências eram nítidas (Ford, Eisenstein, Sófocles, cordel, narrativa oral, História, etc.). O Beato Sebastião (Dom Sebastião, o rei menino de Alkacer Kibir?) se contrapõe a Corisco (um trágico anjo da morte) perseguido por um Antônio da Mortes (torturado pela consciência pragmática de seu papel de "mão do destino", dos deuses - o poder do latifúndio aliado à igreja instituída, ameaçada pelos messiânicos Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Lampião, entre outros).

     A cada dia que passa "Deus e o Diabo" revela dimensões novas da lucidez de Glauber operada pela intuição altamente adestrada por uma cultura ampla, rigorosa, cosmopolita, requintada e explosiva.

     Glauber (talvez como Godard, que o admirava e mudou o rumo de sua construção artística, quando tomou conhecimento do cinema de Glauber) metaforizou-se com o seu tempo (e seu país e seu mundo). Tornou-se, incomodamente (para si) grande. Quando estive com Glauber, em Roma, depois de uma temporada com muitos encontros e colóquios, despediu-se de mim, em direção à realização do projeto "História do Brasil", na casa de seu produtor ("Der Leone Have Sept Cabezas" - ainda não cortadas), Gianni Barcelloni, na Via Del Corso: "Nos vemos no Araguaia" (isto, em 1971). E mergulhou, por um ano, na aventura de colher o material para o seu filme que construiu com o apoio dos cubanos (junto com amigo Marcos Medeiros - companheiro de Vladimir Palmeira, Wellington Moreira Franco, Jean Marc Van Der Veid, que botaram 100 mil pessoas nas ruas do Rio, em 1966, se juntando a todo o movimento estudantil do qual faziam parte José Serra, José Dirceu, Vinicius Caldeira Brant, entre outros), viajando clandestinamente pela América Latina nova, do Pacto Andino, que começava a "fazer água" pela operação Condor (Juan José Torres, Velasco Alvarado caindo, um por um, culminando com a derrubada de Allende, em 1973).

     Glauber, logo que os homens de Sierra Maestra, tomaram o poder, no alvorecer de 1959, começou a corresponder com Alfredo Guevara (o Ernesto, o argentino, não era nem parente) de quem se tornou amigo e parceiro. Alfredo estava, naquele momento, criando o ICAIC (Instituto del Arte y Industria Cinematográfica), junto com Santiago Álvarez e Alea. Anos depois, em 1971, no Festival de Cinema de Pesaro, uma cidade administrada pelo PCI, parte do "cinturão vermelho" da Itália, à beira do Adriático, Glauber me apresenta a Alfredo Guevara, com quem polemizava na ocasião, pois Tomaz Gutierrez Alea (o Titon), apresentava um filme que não era muito bem visto pela burocravia do cinema cubano (embora produzido por ela), "Una Pelea Cubana Contra los Demonios".

     O Festival, dirigido pelo grande amigo do cinema brasileiro, Lino Micceché, era um ponto de referência do cinema de resistência. Homenageava, naquele ano, Nagisa Oshima, com uma retrospectiva completa (em 1971). Gianni Amico e Gustavo Dahl tinham conspirado para irmos (eu e Andrea Tonacci) ao Festival. Gianni dizia: "Depois que Godard desconstruiu o cinema, Oshima é o novo vento renovador" (Godard tinha feito "Vento do Leste", com o dinheiro da RAI - que produzia os cinemas de resistência, sobretudo o latino americano - e da Italnoleggio, com Gianni Barcelloni produzindo o "western spaghetti", de Godard. Uma turma, vinda de maio de 68, juntos com José Antônio Ventura, técnico de som e fotógrafo - fotografou filmes da Belair - irmão de Zuenir, se juntam a Glauber, que canta "Divino Maravilhoso" e recita o manifesto do cinema "Bola Bola", de Miguel Borges, enquanto forma uma linha de passe com Daniel Cohn Bendit, Godard, Gorin - grandes pernas de pau. Gian Maria Volonté, contrariado, passa ao fundo de cena, vestido com uma capa "Ideal", de Antônio das Mortes, enquanto Anne Wiazemsky, mulher de Jean Luc então, recita textos de Marcuse, Althusser, Poulantzas, Marx e outros ícones das leituras marxistas do Grupo Dziga Vertov).

    Glauber circulava com muita desenvoltura pelos circuitos cinematográficos e políticos presentes em Pesaro. Me apresentou a Fernando "Pino" Solanas (que estava presente com o seu "La Hora de Los Hornos", muito festejado - anos depois, fomos nos encontrando, muito cordialmente, em Minas, em Brasília, no Rio), a Pascal Bonitzer (que, juntamente com Noël Burch, Bernard Eisenschitz e outros, faziam o "Cahiers" althusseriano/construtivista/maoista, sob a batuta de Jean Louis Comolli). Ficamos muito amigos, nesta ocasião. Saíamos para conversar, queimando charutos de "kief" (que ele tinha trazido do Marrocos, da viagem que fez com a sua mulher de então, a nossa amiga, que também já partiu, Letícia) pela cidade, invadida por esculturas enormes do Arnaldo Pomodoro. Tomaz Alea teve uma enérgica defesa do seu filme por Glauber diante de uma platéia de intelectuais marxistas do tempo do PCI, de Berlinguer (Pio Baldelli, entre outros). Todos o ouviam com reverência. Era um tempo de radicalização política. A Lotta Coninua começava a ação de guerrilha urbana (sob a orientação do manual de guerrilha urbana do Marighela, editado pela Penguin Books, de Londres).

     Voltamos de Pesaro juntos, no carro de Tonacci. Uma viagem amena em uma tarde de outono que teve uma parada em Spoletto, para um capuccino.

     No início do ano, Glauber estava na sessão (a primeira, pública) promovida por Cosme Alves Neto, de "Perdidos e Malditos", na Cinemateca do MAM e comentou o filme acentuando pontos que mais gostava (a cena da encruzilhada, o papo vazio à beira da rua, a cena do boudoir, etc.) e o recomendou para Peter B. Schumann (um pesquisador alemão do cinema brasileiro - e latino americano - de quem me tornei um grande amigo e que é muito generoso com o meu filme, em seus trabalhos). Depois brigou com Schumann. Davi Neves à saída da sessão (que fazia parte de uma reunião de filmes recém saídos do "forno" - ou "horno"... - juntamente com Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Carlos Alberto Ebert, João Batista de Andrade, Emílio Fontana, Alvinho Guimarães, entre outros) dizia para mim, com suas frases lapidares que: "...você é o Eric Rohmer da curtição!"

     Um ano depois, volto à Italia, com uma filha recém nascida, em Paris, com planos de ir para Nova Iorque e Glauber chega de Cuba, com as latas de "Historia do Brasil" debaixo do braço. Marcos Medeiros já havia chegado antes (estava casado com Maria Lúcia Dahl,  com quem teve uma linda filha) e andava muito conosco. Na segunda vez que estive em Pesaro, nem Glauber, nem Gustavo Dahl, nem Tonacci, estavam lá. A turma era outra: Helena Salem, que fazia uma pós graduação, em Peruggia, Pedro Cavalcanti (um cineasta que estava exilado, pela militância clandestina, no Brasil) com sua mulher maravilhosa, Ana (mostrei "Perdidos e Malditos", para o casal, em uma clandestina e noturna sessão dentro dos muros do Vaticano) e um novo amigo italiano, o cineasta Paolo Zamattio (em Roma conheci sua mulher Paola, que tinha tido um filho, Sandro - já eram pais de Lucca - na mesma época que minha filha tinha nascido, em Paris e, com a chegada de Betty, mãe dos meus filhos, ficaram amigas e "mães cúmplices"). Paolo Zamattio montava um filme de Fernando Birri e todas as noites saíamos para tomar um vinho e comer uma pizza, no Baffeto. Paolo era filho de uma família de produtores ligados à atividade, em Roma. Um aristocrata romano que viajava em seu "Pulmino" (uma van Mercedes, fechada, que ele havia decorado como uma casa móvel, muito confortável). Com o Pulmino havia viajado pela Índia e pelo Marrocos, com Paola (mas não conhecia Paris - tanto falei de Paris, que ele foi até lá, no período que estávamos em Roma). Um dia, inesperadamente, Glauber me liga, na Pensione Odeon, Via del Tempio, e me convida para tomar um bichier di vino, na Piazza Navona. Me convida para montar "História do Brasil". Com a passagem marcada para Nova Iorque, no outro dia, peço a ele para esperar para dar uma resposta. Me convence que poderíamos montar uma casa, com uma moviola e que viveríamos todos juntos, para montar o filme. Em princípio topei mas o projeto nunca foi adiante. Mais tarde Marcos Medeiros tomou as rédeas do filme e o terminou.

     Corta: em 1966 oito intelectuais são presos na porta do Hotel Glória, no Rio, protestando contra a ditadura militar no Brasil, numa conferência da OEA. Glauber está no grupo formado por Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves, Flávio Rangel, Antônio Callado, Jaime Rodrigues e (o "nono", dos "oito do Glória"), Tiago de Mello. Maurício  Gomes Leite me convoca e criamos a Tekla Filmes, para fazer um filme sobre Otto Maria Carpeaux, produzido por seus amigos, a maioria do "Correio da Manhã". Vamos ao Parque Lage filmar Glauber Rocha, no set de "Terra em Transe". Aos berros, diante de uma multidão de atores e figurantes, Jardel Filho recita: "Deixar o vagão correr solto..." Diante de Vieira/Lewgoy, perplexo. Dib Lutfi à câmera (uma Cameflex, do Barreto, que dirigia a fotografia, num de seus raros e fantásticos trabalhos, no cinema). Depois começa a editar, na mesma moviola do Patrimônio, já instalada no centro do Rio, na Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI - de doce memória (Sylvia Ferreira, Edson Santos, Sandra Fânzeres, Marília, Sônia Nercessian, Dulce, Walter Carvalho passaram por ali), com Eduardo Escorel. Era um ponto de passagem para quem ia à Cinelândia, já sendo ocupada por uma nova geração de personagens do cinema (a Difilm, a CN, a Photolab, a Paranaguá, a Saga, a Tekla, a Tabajara, a J. P. de Carvalho, o Fontoura, o Cezário Felfelli - o rei do carvão do cinema - o Bataglin, o Alvadia e outros "aparelhos"). Moisés Kendler, o mineiro cequiano que começava a criar a sua presença no cinema (já tinha filmado, "Papo Amarelo", episódio de "Os Marginais", que compunha um dítico com "Guilherme", de Carlos Prates Correia) é chamado por Glauber para sua assistência do filme (junto com Antônio Calmon). Glauber e os mineiros.                                

     Anos depois, já no Rio, passando pela Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, ouço alguém gritando meu nome, poderosamente. Pensei comigo: conheço esse vozeirão. Era Glauber. Ficamos pelo menos uma hora, de pé, conversando. Me convidou para produzir "Idade da Terra". Na ocasião eu estava envolvido com o projeto de montagem do filme do Alberto Cavalcanti e topei, no ato. Mas não só Glauber sempre foi uma imprevisível força da natureza como, do meu lado, a colaboração com Cavalcanti tornou-se cada dia mais exigente. Não fiz o filme com ele. Para a minha tristeza, nunca cheguei a trabalhar com Glauber. Cheguei perto.

     Mas sempre senti um clima de cumplicidade com ele. Sempre me tratou, à sua maneira, muito deferentemente.

     Em agosto de 1981, Maurício Gomes Leite, que estava muito ligado a Glauber, em Portugal (que convivia com Robert Kramer e outros cineastas que passavam por Lisboa, inclusive Wim Wenders, Samuel Fuller, entre outros), nos liga e diz que Glauber estava morrendo. Ricardo Gomes Leite nos dá a notícia e ficamos completamente perplexos. Dois dias depois Glauber chega morto, ao Rio. Ricardo, que então estava trabalhando com Murilo Valle Mendes, da Mendes Júnior, manda um avião da empresa nos levar para o Rio para o velório (e vai junto). Vamos, numa delegação de mineiros, para o Rio (Geraldo Magalhães, Paulo Vilara, Paulo Augusto Gomes e Ricardo Gomes Leite). E vamos direto para o Parque Lage, onde estava ocorrendo o velório.

     Glauber numa trajetória daquele momento, passava por um processo muito solitário em Sintra, com seus filhos com Paula Gaitán, sua mulher. Relações complicadas haviam afastado os amigos e companheiros de estrada. Sua personalidade complexa havia deixado muitas cicatrizes no seu período de construção de "Idade da Terra". A colaboração no jornal do Tarso de Castro, "Enfim", sua participação no "Abertura", do Fernando Barbosa Lima, na TV Tupi, sua reação à recepção à "Idade da Terra", em Veneza, a proibição de "Di/Glauber" pela família do pintor, entre outros episódios (sobretudo a morte trágica de Anecy, sua linda e genial irmã), tinham estigmatizado Glauber. Suas posições proféticas e lúcidas em relação aos movimentos da história contemporânea brasileira, detectando sutilezas nos movimentos internos da casta militar que tomou conta do país a partir de 1964 (cujos representantes eram, erroneamente talvez, caracterizados como um "bando de torturadores sanguinários", indistintamente, todos iguais - o que não era fato, a história confirmou isso) o indispuseram com a esquerda, com a qual sempre teve relações complicadas (a reação a "Terra em Transe", vinda de uma determinada esquerda, foi bastante negativa, gerando nele uma resposta agressiva). Messiânico, profético, completamente apaixonado pelo seu país e pela América Latina (e pelos povos emergentes da África) tinha uma visão maior e, ao mesmo tempo, íntima, dos movimentos do processo político, que poucos viveram e pensaram. Da mesma forma que conduzia seu processo criativo, sua intuição altamente embasada em um ritual informacional sofisticado e complexo, o colocaram sempre em choque com um maniqueismo que operava (e opera até hoje) na chave de um modelo óbvio e que o incomodava profundamente.

     Sobrou até para mim: no auge da crise do projeto de Cavalcanti ("O Doutor Judeu") que eu tentava criar condições para a realização, com dinheiro da Embrafilme e de construção de parcerias que fomos somando (produtores portugueses como Manuel Queiróz, Arthur Ramos, Rogério Paulo e, no Brasil, Zelito Viana, José Sette de Barros Filho, Cooperativa Brasileira de Cinema, a RFF, dos Farias e outros), a iminência do fracasso do projeto fez com que se voltasse contra mim (sem me citar nominalmente) num recado malcriado, em sua página, no "Enfim". Glauber não era um pessoa de convivência fácil. Hostilizava os mineiros eventualmente (várias vezes me sacaneou falando mal de meus amigos e admirações, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos - Glauber era amigo de Mário Faustino - Otto Lara Rezende e, depois, elogiando-os, noutro momento; numa reação enérgica a uma crítica de Cyro Siqueira a "Porto das Caixas", rasgou a Revista de Cinema, no bar da Líder, gritando um discurso hostil aos críticos mineiros; e, depois, como pretexto de defesa de Cacá Diegues, que tinha perdido um festival ou uma indicação da Coruja de Ouro, para Carlos Prates Correia - "Cabaré Mineiro"? - ataca Carlos, em diversos artigos na imprensa, "sobrando" para o "cinema mineiro", a seu ver, "psicologista e reacionário") e, em outros momentos, declarando seu amor e respeito á crítica mineira (seu livro final, "Revolução do Cinema Novo", tem várias referências às suas conhecidas homenagens aos textos mineiros, da RC).

     Era amigo de Maurício Gomes Leite (com quem chegou a Godard, em 1968, em Paris) que esteve próximo em seus últimos dias, em Lisboa/Sintra. Propôs um boicote ao Festival de Cinema de Belo Horizonte (em 1968) porque a comissão de seleção havia recusado "Capitu", de Paulo César e me deu um esporro, na Mapa Filmes, na ocasião. Tive momentos e encontros muito cúmplices com Glauber. Não consigo julgá-lo pelas suas posições, sempre tão extremadas, em relação a todos. Chegou a acusar o Cinema Novo (termo criado por Ely Azeredo - seu desafeto - e adotado por Paulo César Saraceni - um amigo constante - e ele, de forma sistemática) de traição. Sua personalidade vulcânica, sensível, emocional, mas, por outro lado, lúcida ao extremo, o levava a cometer "injustiças". Não se arrependia de nada. Criou um processo de leitura e de expressão que o tornaram "id" puro. Uma escrita pessoal, idioletizada, deu o tom do seu radicalismo criativo dos últimos tempos. Uma escrita automática, movida pela sensibilidade pura, criou um dos processos criativos mais originais que o século XX assistiu. "Riverão Sussuarana" e "Jango", são textos e reflexões sobre a prosa roseana e a gênese da modernidade política brasileira, origem do que vivemos hoje (e matriz de "Terra em Transe").

     Glauber faz falta? Tanta quanto fazem John Coltrane, Jimi Hendrix, Jobim, Rogério Sganzerla, Oswald de Andrade e outros arautos do caos sublime e civilizatório.

     Mas tudo o que dizemos ainda é incompleto para tentar abordar essa força da natureza que foi Glauber. E até hoje, reflexos do seu gênio criativo aparecem. Ele está por aqui, por perto. Generosamente. Esvaiu-se em energia criativa. Metaforizou o seu tempo. Confundiu-se com ele. A poesia vive disso. E é implacável.

Geraldo Veloso

Agosto de 2011

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