Sócio: Ronaldo de Noronha
1.
O que é o CEC?
O CEC foi e é
uma entidade cara a de muitos de nós, que recusamos a morte do cine clubismo
feito com desprendimento e entusiasmo. É a nossa herança pessoal e cultural,
preciosidade imaterial que levamos para toda parte onde vamos. Um espaço de
luta contra os obstáculos e os desestímulos impostos pelos mundos da Política e
do Dinheiro.
Sabemos que esta recusa, para
continuar a ser efetiva e continuar a dar frutos, depende da paixão e do
trabalho de amantes do cinema e da liberdade que teimam em lutar pelas boas
causas cinematográficas.
2.
Fale do CEC que você viveu.
O CEC, nos anos
60, e também depois, no fim dos 70 e começo dos 80 (tempos em que estive
pessoalmente engajado em fazê-lo viver), era um lugar para encontrar pessoas
que se gostavam e amavam o cinema, o riso e a boa conversa. Um lugar de
sociabilidade, ancorado em entendimentos compartilhados sobre o poder e a
fascinação dos filmes, pela capacidade deles de gerarem novas ideias,
sensibilidades e conhecimentos. Um lugar para permitir e favorecer ações
coletivas visando revoluções nas formas de viver, utopias que, mesmo não
ocorrendo como queríamos, nunca deixaram de nos inspirar.
3.
O que era o cinema quando o CEC surgiu? O que é o cinema hoje?
O cinema pelo
qual lutou o CEC, nos anos 1950 e 60, era um ser vivo, mas sufocado, que
escavava o chão da mesmice e da opressão política e econômica e se abria para
uma coisa que, dentro dele, ao mesmo tempo que vinda do mundo lá fora, clamava
pelo direito de ser livre e verdadeiro: um ser que, ao desabrochar sob os nomes
de neo-realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo, mostrou que o cinema podia ser um
instrumento de pensamento e de emancipação pessoal e política.
Hoje, nos anos 2010, o cinema
continua a sofrer as mesmas necessidades de liberdade e invenção, mas de outras
maneiras, enfrentando as mesmas/outras formas de escravidão. O sistema
opressivo, estandardizado, monopolista dos estúdios da era de ouro de Hollywood
ainda impera, é tão forte quanto nos idos de Bazin, Jacques e Cyro, embora muito
maior, isto é, literalmente mundializado. Os Rosselinis, os Welles, os
Eisensteins de outrora agora se chamam Kiarostami, Kar-Wai, Malick, Lynch,
Coutinho. Unindo essas gerações, distantes no tempo, mas não na inspiração e no
amor à arte do cinema, como ponte e passagem, Godard ainda persiste.
Nós, cequianos, com nossa teimosia e vontade quixotescas, persistimos
também.
4.
Na tua visão, o que mudou na cinefilia, de sessenta anos para cá?
Antes, a cinefilia era mais rara e,
por isso mesmo, mais preciosa e cultivada, dadas as dificuldades de ver bons
filmes com frequência, inerentes ao sistema de distribuição e exibição da época
(pré-TV, pré-DVD, pré Internet). Hoje, ver filmes novos ou antigos é mais fácil
e, portanto, mais banal; mas, por isso mesmo, é uma atividade mais bem
informada e amparada pela documentação, escrita e audiovisual.
Mas, mutadismutandi, a
cinefilia é ainda o mesmo amor de sempre pelo cinema enquanto revelador do que
somos e do que não somos, do mundo enquanto realidade e configuração de
possibilidades.
5.
Quais foram os pontos doutrinários, teóricos e estéticos que você destaca, na
trajetória do CEC? Quais os que mais exerceram, sobre você, alguma
influência (ou fascinação)?
Citando sem
ordem genética ou de importância:
o cinema enquanto fantasia e sonho;
o cinema como documento do real;
o cinema enquanto expressão pessoal
de autores;
o cinema como invenção do futuro;
o cinema enquanto descoberta de
diferenças.
Todos esses aspectos do cinema me
fascinaram e influenciaram – mesmo que alguns pareçam antinômicos a outros.
6. O que você legou, da sua vivência no CEC, para as atividades profissionais que você exerceu (ou exerce)?
Depois da
“morte” eventual do CEC em 1968, tornei-me professor de sociologia, disciplina
que estudei durante os anos 60; depois que ele “renasceu”, em 1977, voltei a
reunir na mesma respiração e inspiração o cinema e as ciências sociais. Meu
campo de investigação e ensino, hoje, é a sociologia da cultura e da arte.
Diria que o cinema me fez um
sociólogo mais livre, menos dogmático; e que a sociologia me fez ver e pensar
os filmes com uma consciência mais ampla, mais rica.
7.
Cite alguns personagens com os quais conviveu na sua vivência do CEC.
Jacques do
Prado Brandão, Maurício Gomes Leite, José Haroldo Pereira, Cyro Siqueira,
Victor de Almeida, Paulo Arbex, entre os mais velhos, que nos precederam como
pioneiros do cine clubismo e da crítica.
Geraldo Veloso, Carlos Alberto
Prates Correia, Ricardo Gomes Leite, Moisés Kendler, Flávio Werneck, Geraldo
Magalhães, Mário Alves Coutinho, Paulo Augusto Gomes, colegas e amigos da minha
geração, ou mais ou menos.
Alcino Leite Neto, Ivan Cézar
Cláudio, Marcelo Castilho Avelar, Carlos Henrique Santiago, da geração 70-80,
que tivemos o prazer de ajudar a formar e ver belamente frutificar.
8.
O CEC foi criado sob a inspiração do exercício crítico; a construção de um
cinema brasileiro a partir da formação no CEC "traiu" a sua vocação
primeira?
De modo algum –
todos aqueles amigos e companheiros de muitas jornadas que se tornaram
cineastas, montadores, produtores etc. levaram para prática de fazer filmes o
conhecimento do cinema do passado e do presente, e do exercício crítico sobre
este cinema, que os ajudaram a fazer um cinema novo, inventivo e
autoconsciente.
9.
Examinando o apanhado de títulos e diretores brasileiros que passaram pelo CEC
(ou se aproximaram de diversas formas com ele (CEC), como você vê a
possibilidade de existência de um "cinema do CEC"?
Não penso que
houve um “cinema do CEC”, nem “cinema mineiro” propriamente ditos. Os
realizadores de filmes que passaram pelo CEC, militando no cine clubismo ou
não, foram pessoas do seu tempo e lugar: mineiros, brasileiros, cosmopolitas.
As “influências” que sofreram ou adotaram foram as que vieram das suas épocas,
dos lugares onde viveram, das pessoas que encontraram pelo mundo; seus
engajamentos foram com a contemporaneidade, com o mundo moderno, nos quais o
CEC se situou diversamente, quer dizer, de acordo com cada um deles.
10.
Você acredita numa "mística do CEC"?
Depende do
sentido que se der à expressão. Para mim, só há “mística” quando algum ser ou
coisa são destacados do fundo das coisas banais e são recobertos por uma aura
de exceção, de excepcionalidade. Em parte, é uma ilusão benévola, mas não só: é
também um reconhecimento de ter havido no passado momentos mágicos que, para
nós, se tornaram caros, por amor ao cinema e aos feitos heroicos, que
acreditamos ser preciso conservar na memória e continuar a reproduzir no
presente e no futuro.
Penso que as várias gerações de
cequianos, ao longo destas décadas, valorizaram a herança recebida dos
pioneiros já citados – derivada da grandeza deles – e fizeram dela algo de
valioso e intrinsecamente honrável, procurando estar à altura do que antes foi
feito.
Ronaldo de Noronha é professor de
Sociologia da Cultura, da UFMG, crítico de cinema, pesquisador e membro de
Conselho Curador do CEC